A Rainha Charlotte e nós: falemos sobre a representatividade negra feminina

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Absolutamente quase nada na vida me convenceria a assistir a uma série sobre a monarquia, ou até mesmo sobre a Família Real Britânica – a menos que a personagem principal fosse uma mulher negra, e a série repleta de personagens femininos negros não subalternizados.

Pois é, esse foi o único e principal motivo que me levou a assistir à série da Netflix, Rainha Charlotte: Uma História de Bridgerton.

A série está muito além de uma mera história de amor no âmbito da monarquia britânica, ou sobre os segredos escondidos que cercam a vida e o cotidiano da realeza. Rainha Charlotte é fundamentalmente carregada de símbolos que nos levam, meros espectadores, a querer assistir tudo até o último episódio, sem querer, de fato, sair dela.

Ao longo dos anos, vi diversas produções, muitas nacionais, se repetirem usando personagens negros ocupando papéis de figuras subalternas – muitas delas em situações que retomam os tempos da escravidão. Não que não seja importante – e necessário – retomar esse período da nossa história como estratégia didática para afirmar que o período existiu, e deixou marcas históricas presentes até hoje no nosso cotidiano.

Todavia, vivemos tempos de representatividade negra. A situação chegou a um ponto em que as produções fílmico-televisivas simplesmente não podem mais fingir que nós não existimos – e queremos nos ver em posições de renome e destaque. Muita coisa precisa melhorar, mas o fato é que as nossas caras e os nossos cabelos não podem mais ser escondidos, disfarçados ou branqueados. Nós, mulheres negras, queremos ser vistas sob outra óptica que não a da mulher negra escravizada com fardos na cabeça e olhar desolado nas produções.

Chegamos ao tempo em que afirmar a nossa presença e a nossa existência como sujeitos de direito perante uma sociedade que escravizou, matou, sequestrou, roubou e destruiu vidas de negros livres d’África é fundamental. Falemos cada vez mais das nossas dores, e sobretudo, das nossas histórias. Histórias de conquista, de poder e vitória.

A série Rainha Charlotte enseja em nós, mulheres negras, a imagem de que, sim, podemos ser rainhas, podemos pertencer à realeza. Meghan Markle, a Duquesa de Sussex, é um exemplo claro de que essa realidade, por mais distante que pareça, é possível e está acontecendo diante dos nossos olhos.

Eu sei que nossos anseios em ver muitas de nós em espaços de poder e vitória são latentes, e mais que justos. Entretanto, não podemos esquecer que isso está acontecendo. Estamos reescrevendo a história, inserindo novos personagens dantes não vistos. Queremos mais? Sim, claro. Mas, estamos quebrando as barreiras que nos sufocavam nas artes, seja na música, no cinema, na TV – agora, nas plataformas de streaming. Somos muitos. Somos muitos que consumimos. Somos notados. Queremos ser mais que consumidores. Queremos atuar e ocupar os papéis que até bem pouco tempo, não era sequer dada a possibilidade de pensar sobre. E India Ria Amarteifio fez esse papel com imensa maestria e singeleza.

Poderia aqui discorrer mais e mais linhas sobre a série Rainha Charlotte, abordar cada personagem que marcou essa produção. Não farei isso. Deixarei para vocês, leitores e leitoras, a graça de poder apreciá-la, e tirar suas próprias conclusões.

Deixarei aqui um vídeo bônus que a plataforma produziu com a participação de Alicia Keys, e uma orquestra totalmente feminina regida pela maestrina Ofentse Pitse, primeira maestrina negra da África do Sul, e várias musicistas negras, que me cativou por completo.

Confesso que não fiquei apaixonada só pela série, mas também pelo vídeo.

Volto a dizer, somos muitas e representatividade importa. Nunca imaginei na vida ver uma produção musical com uma cantora negra e toda a orquestra feminina e majoritariamente negra. Foi lindo. É lindo. Eu não consigo para de ver.

Somos a realização dos sonhos das nossas ancestrais. Vida longa às mulheres pretas!

A eleição de Lula e o dever ético de ser progressista

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Resisti a escrever este texto por diversas razões: falta de tempo hábil para elaborar algo com consistência e embasamento suficiente para convencer o leitor a ir até a última linha, falta de prática (parei de praticar a escrita faz um tempo), necessidade de me expor politicamente em tempos tão belicosos, vontade de expressar minha opinião sobre o processo eleitoral de 2022. Enfim, diversas questões me tomaram por inteira, mas o ímpeto da escrita me conduz a caminhos que eu mesma desconheço. Relutei até aqui.

Começo dizendo que gosto de retomar minhas memórias afetivas quando discorro sobre algo, e não faria diferente para falar sobre política. Votei pela primeira vez em 2002, ano em que Luiz Inácio Lula da Silva candidatou-se à Presidência da República pela quarta vez. Naquele tempo, um indivíduo constituía sua cidadania por meio do voto a partir dos dezoito anos, e eu já tinha vinte anos.

Foi a primeira eleição presidencial da qual eu participei, e votei em Lula. Repeti a experiência quando da sua candidatura à reeleição, em 2006. E assim prossegui quando da candidatura de Dilma Rousseff, sua sucessora partidária ao cargo. Mantive o ritmo até 2018, em meio ao caos em que o Brasil vivia, após a candidatura de Lula ter sido barrada pela Lei da Ficha Limpa. Fernando Haddad foi lançado candidato no lugar dele, e eu dei-lhe o voto em ambos os turnos. Eu sentia imenso prazer pelas minhas escolhas políticas.

Entretanto, para minha infeliz surpresa, Haddad não saiu vitorioso no pleito. Eu me recordo que, até então, nunca havia ficado tão impactada com o resultado das urnas como naquele ano. A derrota eleitoral do PT traduziu-se num baque muito forte para mim. Eu chorei copiosamente igual a uma criança desconsolada. Minha saúde emocional foi desafiada. Lembro que depois dali eu nunca mais fui a mesma.

Um mar de frustração e desesperança tomou conta de mim. Eu me questionava como era possível chegarmos ao ponto em que chegamos vivendo numa democracia.

Saltando para este ano, eu me vi fazendo uma retrospectiva da minha vida e das minhas escolhas políticas, e me dei conta de que faz vinte anos que votei em Lula para presidente – e que eu repetiria a experiência novamente em 2022, como assim o fiz.

Votei em Lula nos dias 2 e 30 de outubro deste ano. A marcha da apuração no segundo turno foi, como disse Galvão Bueno, um verdadeiro “teste pra cardíaco”. Só consegui relaxar mesmo depois que a Justiça Eleitoral declarou a eleição de Lula – com 98,81% das urnas apuradas!

Ao longo de toda essa trajetória, descobri que eu não tinha simpatia partidária pelo PT, e sim que elegi um líder nacional que me representa. Eu me dei conta de que nunca fui petista como um dia cheguei a acreditar. Na verdade, desde sempre fui lulista.

E, novamente abrindo o baú das minhas memórias afetivas, como falei anteriormente, lembro dos meus posicionamentos políticos de caráter progressista mesmo vindo de uma estrutura familiar conservadora.

Eu sempre almejei políticas de ações afirmativas para pessoas com a minha origem social. Nunca imaginei ser possível a construção de uma sociedade que não fosse pautada na reparação social. É inconcebível pensar, nos dias de hoje, num mundinho fechado no qual quem têm seus privilégios brigam para mantê-los, e com isso não permite o acesso de outras categorias sociais a espaços de poder. Nunca imaginei ser possível viver na base do “os outros que lutem”.

Isso me faz lembrar de Boaventura de Sousa Santos quando nos diz que estamos em tempos de ouvir as vozes dos indivíduos do sul global. Precisamos dar ouvidos aos sujeitos que construíram e constroem história todos os dias, àqueles que estão marginalizados e abaixo da linha do equador. Hoje, esses sujeitos não podem mais ser renegados.

Porém, como sei que o mundo é mundo desde sempre, e nele há espaço para diferentes ideologias e modos de pensar, sei que o ódio que vivemos nesses últimos quatro anos sempre existiu. Esse ódio sempre esteve ali do nosso lado. As eleições presidenciais de 2018 só serviram para saber, de fato, quem caminha ao nosso lado. A ascensão do atual governo ao poder serviu apenas para que os seus apologetas se sentissem confortáveis para mostrar publicamente quem de fato sempre foram, o que querem e o que estão dispostos a fazer para assegurar os seus privilégios hereditários.

Esses quatros anos serviram para que pudéssemos avaliar as nossas intenções frente ao outro, que socialmente estava no mesmo lugar da pirâmide social que nós, mas se comporta e pensa como quem estivesse no topo. É contraditório pensar que um sujeito oriundo de uma classe social historicamente subalternizada, que teve/tem seus direitos vilipendiados numa macroestrutura que lhe sufoca aja e coadune com o pensamento do colonizador, que tenha postura violenta e arbitrária com quem lhe é semelhante.

Enfim, essas são discussões que posso discorrer em outro momento. Por ora, me detenho ao fato de que por vinte anos a minha escolha foi uma só, e me orgulho imensamente da pessoa que me transformei ao longo desse período.

Não por outra razão, explicitarei em breves linhas (prometo ser breve, rss), o motivo que me leva a eleger o mesmo candidato e seus sucessores políticos por vinte anos. Eu ingressei numa universidade pública federal pelo sistema de cotas em 2009. Durante a graduação, tive acesso a políticas de permanência na universidade – fui bolsista Capes por dois anos, e tive a oportunidade de fazer diversas formações em nível de extensão e/ou aperfeiçoamento em universidades públicas do Brasil inteiro, graças à verba destinada aos programas de extensão nas universidades. Em 2015, ingressei no programa de mestrado da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), criada pelo governo Lula. Pude ver colegas e conhecidos oriundos do mesmo lugar social que o meu ingressando na universidade pública – o que parecia impossível à nossa realidade. Ainda em 2015, realizei o sonho da casa própria por meio de uma política social de moradia da era Lula – o Minha Casa, Minha Vida, e com esse sonho tive acesso a bens de consumo graças ao poder de compra concedido pelo seu governo.

Além de todas essas políticas que elenquei e usufruí, vale ressaltar que, somente no governo Lula, houve um crescimento exponencial de universidades públicas federais, conversão das antigas escolas técnicas em institutos federais (IFs), parcerias com instituições privadas, a fim de que fossem concedidas bolsas de estudos àqueles que pretendiam ingressar no ensino superior, e não tinham condições financeiras de arcar com os custos de uma faculdade particular. Foi também na era Lula que o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU. Ainda no seu governo, milhares de brasileiros conseguiram pôr comida no prato graças ao Programa Fome Zero. O Bolsa Família, programa de transferência de renda, concedeu um pouco mais de dignidade às famílias mais humildes. Houve também uma atenção especial à educação básica, com o aumento do tempo de escolarização por meio do ensino fundamental de nove anos. Deu-se atenção às matrizes étnicas que ajudaram a formar o Brasil, com políticas sociais, secretarias de atendimento, criação de leis no âmbito educacional, a exemplo, das leis 10.639/2003 e 11.645/2008.

[Detalhe importante: a lei 10.639, que instituiu a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras, foi sancionada pelo presidente Lula no dia 9 de janeiro de 2003 – apenas oito dias depois de ter sido empossado. Para garantir a efetividade da aplicação da lei, foi criada a SECAD (Secretaria Especial de Cultura, Alfabetização e Diversidade). Em janeiro de 2019, tal órgão foi extinto num dos primeiros atos oficiais do atual governo. Acredito que isso sirva para deixar claro o meu posicionamento contrário à atual gestão.]

Diante de tudo que disse até aqui não seria ético da minha parte não ser progressista, não votar em Lula, não escolher a reparação social.

Não seria ético da minha parte vir de uma origem social humilde, mas com acesso à boas escolas e boas universidades, renegar os meus. Renegar minha história de vida, minha trajetória escolar, profissional, e sobretudo pessoal.

Como mulher negra, acadêmica, servidora pública, que escreve, que produz conhecimento, é meu dever estender a mão aos que querem trilhar o mesmo caminho que o meu. É meu dever social abrir as portas que eu entrei para mais gente adentrar. É meu dever social espelhar minha trajetória para tantas outras meninas e mulheres negras que sonham um dia chegar aonde cheguei. Para que tenham acesso ao conhecimento, pois conhecimento é poder, conhecimento liberta, conhecimento afronta as estruturas sociais de poder postas por quem herdou e herda há anos direitos sociais que são negados às muitas categorias sociais desses brasis que vivemos. Os brasis das mulheres negras, indígenas, trans, homo, mães solos, arrimos de família, órfãs de uma pandemia que assolou o mundo por dois anos. Quero ver os extensos brasis empoderando-se por melhorias sociais aos que mais precisam.

No mundo em que vivemos não há espaço para ideias e práticas conservadoras de quem pensa em si próprio, e o restante que se esvaia em sangue e ódio. Não há espaço para o ódio.

Queremos a paz, a união, o congraçamento, as boas risadas com os velhos amigos que foram interrompidas nesses quatro anos de ode ao ódio.

Sejamos pacíficos. É tempo de reflexão e sempre será. Que possamos nos adiantar no relógio da vida e reparar nossas diferenças para que possamos discordar na dialogicidade de ideias que nos atinam e nos fortalecem nas diferenças que nos perpetuam sujeitos de direito.

Que possamos viver doravante tempos de paz. Assim seja. Assim é.

Asé.

Dedico esse texto aos meus ancestrais, às mulheres pretas que me criaram, partilharam a feliz convivência e me fortaleceram na estrutura para que hoje eu seja mulher preta acadêmica e produzindo conhecimento que circula.

Caminhos abertos sempre.

EFEMÉRIDES DO ANO DE 2022

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Para encerrar o ano, elenquei algumas efemérides mundiais e nacionais que serão temas aniversariantes em 2022. A saber:

– 622: 1400 anos do surgimento da fé islâmica.

– 1782: 240 anos da morte do Marquês de Pombal.

-1792: 230 anos da execução de Tiradentes.

– 1802: 220 anos do restabelecimento da escravidão nas colônias francesas por Napoleão Bonaparte.

– 1812: 210 anos do nascimento do romancista britânico Charles Dickens.

– 1822: 200 anos da Independência do Brasil.

– 1832:

I) 190 anos da fundação da Sociedade Protetora dos Desvalidos;

II) 190 anos da Cabanada (Pernambuco e Alagoas).

– 1842: 180 anos do Tratado de Nanquim, que pôs fim à primeira Guerra do Ópio.

– 1852: 170 anos da vitória da aliança liderada pelo Império do Brasil na Batalha de Monte Caseros, que acabou com a Guerra do Prata (Guerra contra Oribe e Rosas).

– 1862:

I) 160 anos da criação da Escola Interna do Asilo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia;

II) 160 anos da publicação d’Os Miseráveis, de Victor Hugo.

– 1872:

I) 150 anos do primeiro censo demográfico do Brasil;

II) 150 anos da assinatura do Tratado de Loizaga-Cotegipe (definição dos limites entre Brasil e Paraguai após o fim da Guerra da Tríplice Aliança).

– 1882:

I) 140 anos da morte de Luiz Gama;

II) 140 anos da morte de Charles Darwin;

III) 140 anos do nascimento de Monteiro Lobato.

– 1892:

I) 130 anos do nascimento de Graciliano Ramos;

II) 130 anos do nascimento do general Francisco Franco;

– 1902: 120 anos do nascimento de Carlos Drummond de Andrade;

– 1912

I) 110 anos do naufrágio do Titanic;

II) 110 anos do nascimento de Jorge Amado;

III) 110 anos do nascimento de Luiz Gonzaga.

– 1922:

I) 100 anos do nascimento de Darcy Ribeiro;

II) 100 anos do nascimento de José Saramago;

III) 100 anos da morte de Lima Barreto;

IV) 100 anos da fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB-SBIC);

V) 100 anos da Semana de Arte Moderna;

VI) 100 anos da dissolução do Império Otomano.

– 1932

I) 90 anos da criação da Justiça Eleitoral do Brasil;

II) 90 anos da chegada da Frente Negra Brasileira à Bahia;

III) 90 anos da Revolução Constitucionalista em São Paulo;

IV) 90 anos da vitória eleitoral de Adolf Hitler na Alemanha.

– 1942:

I) 80 anos da declaração de guerra do Brasil às potências do Eixo;

II) 80 anos da assinatura da Declaração das Nações Unidas, base da atual Organização das Nações Unidas.

III) 80 anos do início da Batalha de Stalingrado;

IV) 80 anos da primeira batalha de El Alamein.

– 1952:

I) 70 anos da tomada do poder em Cuba por Fulgencio Batista;

II) 70 anos da eleição do general Dwight Eisenhower à Presidência dos Estados Unidos.

-1962:

I) 60 anos da chegada da pílula anticoncepcional ao Brasil;

II) 60 anos da prisão de Nelson Mandela;

III) 60 anos da Crise dos Mísseis em Cuba;

IV) 60 anos de fundação do município de Lauro de Freitas.

– 1972:

I) 50 anos do escândalo do Watergate;

II) 50 anos do Massacre de Munique (Setembro Negro);

III) 50 anos da morte de Cosme de Farias.

– 1982:

I) 40 anos da morte da cantora Elis Regina;

II) 40 anos da fundação da banda Legião Urbana;

III) 40 anos da Guerra das Malvinas.

– 1992

I) 30 anos do impeachment do presidente Fernando Collor;

II) 30 anos do Massacre do Carandiru;

III) 30 anos da morte de Santa Dulce dos Pobres;

IV) 30 anos da Eco-92;

V) 30 anos do assassinato do juiz Giovanni Falcone;

VI) 30 anos do lançamento do livro Na Casa do Meu Pai, de Kwame Anthony Appiah.

– 2002

I) 20 anos do fim da Guerra Civil Angolana;

II) 20 anos do pentacampeonato da Seleção Brasileira de Futebol;

III) 20 anos da chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República.

– 2012

I) 10 anos da constitucionalidade das cotas no Supremo Tribunal Federal;

II) 10 anos da ascensão do ministro Joaquim Barbosa à presidência do Supremo Tribunal Federal, primeiro e único presidente negro na história do STF.

Meu cabelo me liberta

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Faz tempo que não publico textos aqui no Escrevivência. Entretanto, há algumas semanas, venho pensando num texto comemorativo. Sim. O blog completou dez anos neste ano, e gostaria de trazer um post para celebrar sua existência – e o quanto ele me trouxe boas novas.

Como neste ano, mais especificamente, mês passado, eu completei sete anos de cabelo crespo/natural/black power, também gostaria de comemorar com meus leitores essa alegria que o empoderamento feminino negro me trouxe.

Publicar textos no Escrevivência me ajudou a superar alguns desafios na minha vida. Um deles foi assumir por completo minha identidade crespa. Aceitar minha beleza natural como ela realmente é. E, assim o fiz, lá em 21 de junho de 2014.

E posso confessar para vocês: é libertador. Claro que não é um processo fácil de enfrentar. Ainda mais, nós, mulheres pretas, que desde cedo fomos ensinadas a alisar nossos cabelos em prol de “uma boa aparência”. Nós, mulheres pretas, que desde criança odiamos nosso cabelo porque aprendemos a vê-lo e adjetivá-lo como “duro, ruim, de bombril”, dentre outros. Crescemos odiando nossos cabelos e encontramos no alisamento a solução de todos os nossos problemas, inclusive, o da autoestima.

Como a maioria das meninas negras nascidas na década de 1980, e na periferia, cresci numa família que não falava de consciência racial, de empoderamento feminino, muito menos de beleza black. Cuidar dos cabelos das crianças negras era um desafio para as mulheres que cresceram e foram criadas num universo racial distinto e perverso. Logo cedo, todas elas foram doutrinadas a alisar seus cabelos para serem aceitas socialmente.

Cabelo sempre foi instrumento de identidade social muito forte. Por meio do cabelo, nós nos afirmamos socialmente, temos portas abertas ou fechadas a depender do nível de racismo entranhado nas instituições. Se é assim hoje, imagina isso nas décadas de 1970, 1980 e 1990!

A luta racial existe já há bastante tempo, mas cada conquista é um grande desafio. Não se libertam mentes doutrinadas pelo racismo da noite para o dia, por mais progressistas que queiramos ser.

Assumir identidade étnica está para além dos traços fenotípicos. Parte de uma consciência de classe e luta que requer muito mais do que mudança de padrões de comportamento. Parte da premissa de que vivemos num estado socialmente racista, pensado e estruturado para dilapidar todas as nossas ações e empreitadas.

E, quando eu assumo meu cabelo natural/crespo, eu desafio esse estado racista. Eu desafio o ódio racial presente nas nossas relações de convivência. Eu crio consciência no outro que vê em mim uma representação identitária negra de poder – “Yes, we can”.

Isso é poder para o povo preto. Ou como disse Chico César: “Respeitem meus cabelos, brancos”.

Assumir o cabelo crespo em terra de chapinhas, alisantes químicos poderosos com grandiosas promessas de alisamento definitivo, é desafiar o sistema financeiro e político. Sim, pode parecer pouco ou quase nada, mas não é.

Mas, vejam como as indústrias de cosméticos mudaram seu nicho de mercado a partir do momento em que um número significativo de mulheres negras deixou de alisar seus cabelos e assumiram sua identidade crespa.

As mesmas indústrias que nos vendiam cosméticos com promessas milagrosas de alisamento, agora nos oferece cuidado com a raiz crespa. Não, meu caro. Não é consciência social conosco, mulheres pretas. Isso se chama demanda de mercado, estratégia mercadológica.

Perceberam aí o impacto no mercado financeiro da nossa presença? Se interferimos no sistema econômico, também penetramos no sistema político.

Vejam quantos e quantas de nós, pessoas pretas, se encontram representadas nas campanhas publicitárias, programas de TV, marketing digital, na vida parlamentar do nosso país.

Quanto da presença negra se encontra dentro da política parlamentar hoje? Eu sei que esse quantitativo aparenta insignificante, mas não é. Há bem pouco tempo não tinha ninguém com a nossa cara dentro do cenário político nacional, nos cargos de alto escalão. Se esse número ainda é insuficiente hoje, era bem menor há bem pouco tempo.

Isso é poder. Agora, imagina se todo o povo preto tomar consciência do poder que tem nas mãos e resolve se apoderar da sua consciência racial e de classe para fazer valer políticas públicas para a população negra. Imagina se adentrarmos em maioria nos espaços nos quais o acesso sempre nos foi negado historicamente?

A política de cotas nas universidades é um marco histórico a ser lembrado nesse post. Quem podia imaginar que as universidades públicas federais reservariam parte de suas vagas para a população negra? Ninguém, né? Pois é, há alguns anos, isso seria praticamente impossível, mas a luta do povo negro fez valer seu direito de ocupar espaços de poder, espaços de produção de conhecimento.

E o que isso tem a ver com cabelo? Muita coisa. Assumir o cabelo black power é parte do discernimento da nossa identidade social de pessoa negra num estado de herança escravista, num estado que escravizou e matou nossos bisavôs, nossas avós, e que lutamos diuturnamente para não sermos mortos por esse mesmo estado. Não queremos ser mortos nas esquinas e nas favelas, nem ter nossos corpos jogados nas valas, ou chegar ao IML sem identificação. Não queremos ver nossos filhos sumirem nas ruas por simplesmente serem pretos.

Queremos oportunidades iguais. Não queremos mais do que pensamos ter direito. Queremos empregos dignos, vagas nas escolas e universidades, ingresso na economia formal e seguridade social. É isso que buscamos. Essa é a nossa luta.

Ah, e o cabelo. O cabelo é parte do processo.

P.S.: vários motivos me levam a comemorar com este post: os dez anos do Escrevivência, os sete anos do meu cabelo sem alisamento, e meus 39 anos de vida e saúde numa pandemia sanitária que já levou mais de 537 mil vidas pela covid-19. Passar por uma pandemia neste século, gozar de boa saúde, não ter contraído o vírus, já ter tomado a primeira dose da vacina, e a 21 dias de tomar a próxima dose são motivos mais que necessários que me fazem celebrar a vida.

Viva o SUS. Vacinas salvam. Usem máscara. Fora Bolsonaro. Fora governo fascista.

Sejamos cada vez mais sonoras, visuais e a(l)tivas

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Cresce a cada dia o movimento de mulheres, em especial o de mulheres negras, o que denota não só a força do empoderamento feminino frente a questões que nos atingem diretamente, bem como a conquista por espaços de poder antes nunca experimentado por muitas de nós.

Falo isso com a certeza que tenho ao discorrer por essas linhas do poder que uma mulher negra possui quando transmite sua fala adiante horizontes eivado de vícios que solapam nossa imagem e representatividade atuante.

Frente a essa questão, não desconsidero os ataques vis e deletérios que sofremos no mundo real e virtual. Isso apenas demonstra o quanto nossa atuação/presença tem sido incômoda e sinônimo de afronte aos que querem renegar-nos ao silenciamento de um espaço/lugar social subalternizado – estamos em processo de transformação, e isso leva tempo.

A fala, a escrita e especialmente a presença física da mulher negra em alguns espaços sociais causam a fúria de muitos a ponto de provocar a externação do ódio que uma sociedade alimenta todos os dias a conta-gotas. Em doses homeopáticas para que não tenhamos dimensão da agressão.

Isso tem sido quase que cotidiano nas mídias sociais. Diversos são os casos registrados de/por mulheres negras com significativa visibilidade social que são agredidas pública e mordazmente por indivíduos que nos consideram seres desprezíveis, e, portanto, merecedores dos ataques mais covardes.

Atentemos para o fato de que se trata de mulheres negras com significativa presença na mídia televisiva, o que por sua vez, não diminui o impacto das agressões.

Agora, invertamos essa lógica para o universo das mulheres negras que vivem no anonimato. Como é o reflexo dessa violência simbólica e diária no nosso cotidiano? Pois então, é esta a nossa rotina: desafiar e ser desafiada todos os dias nos lugares sociais aos quais somos relegadas, expor nossas necessidades como forma de combate à violência simbólica, física, sexual e tantas outras que sofremos. E, ainda assim, ocupar espaços novos para muitas de nós. Espaços que nossas gerações anteriores jamais puderam adentar.

Os espaços que conquistamos são fruto de muita luta que teve início com/em nossas predecessoras. Os bancos das universidades são um deles e todo dia aparece quem nos diga que não deveríamos estar lá, que a universidade não é nosso lugar e que descaradamente duvidem dos nossos desempenhos acadêmicos. Os altos cargos ratificam a epopeia que é enfrentar a misoginia estatal – sim, vivemos num Estado misógino que corrobora com as agressões das quais somos vítimas – e evidenciam a dureza de poder prosseguir para que possamos abrir espaços, a fim de que outras tantas mulheres negras cheguem ao alto escalão. É uma jornada árdua, mas necessária.

É nesse sentido que assinalo nossa necessidade de sermos cada vez mais sonoras, visuais e a(l)tivas. Reforcemos o empoderamento da mulher negra em todos os contratos sociais que firmarmos nas situações e locais mais inusitados que possam surgir. Esse é o único modo de sermos vistas.

É bem verdade que a escrita é uma ferramenta de poder que possui um uso para além do simbólico. O pleno domínio no mundo letrado ainda é uma realidade a que temos chegado aos poucos, e da qual devemos fazer uso ad eternum. E é por meio dele que devemos fazer-nos presente.

A sonoridade, a visibilidade e a altivez da nossa imagem devem e são representadas por escolhas que reafirmam nosso lugar social. Nosso lugar de fala é por demais importante no processo de reconstrução de imagem isento de estereótipos. E é por intermédio da fala que surgirão outros componentes tão importantes para o construto dessa representatividade positiva que tanto ensejamos/almejamos.

Por isso, usemos mídias sociais, veículos de comunicação oficiais ou não para referendar nossa atuação e presença.

É certo que toda batalha é severa e requer muitos esforços, a fim de que consigamos tomar assento em determinadas situações. Mas, reafirmo que é sim necessária, ainda que longevo possa ser o vislumbre do sucesso. O triunfo não será gozado por nós em vida, mas certamente abriremos espaços para que outras possam usufruir dos direitos e garantias sociais que buscamos. Assim foi feito por nossas mães, avós e bisavós – que não estão mais aqui para ver o fruto das batalham em que se envolveram. Elas abriram espaço para que ocupássemos os bancos das universidades, para que estivéssemos à frente dos cargos de chefia por elas não experimentados.

Para além da fala e da escrita, façamo-las representar visualmente com o reforço da nossa identidade étnica, do nosso credo/religiosidade e do sentido que está em reafirmar a pluralidade dos indivíduos.

Deixemos que a estética transite não só pela nossa beleza física, mas também pela nossa voz, pelo nosso letramento e nossa competência acadêmica. Chega de aparecer na televisão somente como passistas de escola de samba ou como negras gostosas a atiçar os instintos mais sacanas da macharada. Temos muito mais a falar do que nós mesmas podemos imaginar. Que toda e qualquer tentativa de silenciamento das nossas falas caiam em solo infértil, pois nossa capacidade de abstração caminhará a passos largos no universo letrado que ocupamos.

Avante, isso é só o começo.

Nós, mulheres pretas, também temos o direito de amar – e ser amadas

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Não aceite migalhas de afeto. O amor próprio é o elixir que está faltando no coração de muita preta por aí.

Ao longo dos tempos, tenho visto muitas mulheres, especialmente as pretas, serem preteridas por força de um contrato social elaborado especialmente para nos excluir. Aquele famoso jargão, “mulher preta não é pra casar” (sic!).

Isso é facilmente percebido nas relações afetivas que são constituídas informalmente – “juntar os trapos” -, e que dispensam maiores formalidades no envolvimento dos casais, sob a ótica de que não é importante” constituir uma relação mais séria conosco.

Não é preciso ir muito longe para ver o tanto de mulher preta que compartilha relacionamentos não acordados pela união estável/casamento. Isso não se configura um problema na relação afetiva, desde que ambos os envolvidos concordem com o seu estado de convivência. Entretanto, devo dizer que o reflexo dessa informalidade ratifica toda vez e sempre o modo como somos vistas e reportadas socialmente.

O sonho do matrimônio ainda é um legado conferido a quem detém o valioso patrimônio da cor – mulheres brancas – que, por sua vez, são em si representações de status de poder e sucesso social. Tal observância advém da vida prática. Não requer muita expertise qualquer inferência a respeito – basta ver quais mulheres figuram ao lado de homens que são a representação do poder no mundo [não se atentem às exceções, please].

Se observarmos com cautela, veremos muitos casos de mulheres pretas que por gerações são tratadas como menores frente ao matrimônio. Um disfarce nem um pouco amoroso que nos acomoda num lugar social de desprezo, nos condicionando a viver com migalhas amorosas e que determinam nosso lugar de subalternidade no espaço.

Aqui, não se faz relevante as estatísticas de homens pretos que preterem mulheres pretas pelo ideal de beleza e prestígio que a branquitude confere. Não me deterei a falar dos homens pretos, pois a minha atenção aqui é exclusivamente para nós: mulheres pretas.

Pois bem, e é falando de nós e para nós que volto minha fiel atenção, tendo em vista este texto ser imensamente autoral de uma mulher preta que ama e é amada. Que anseia pelos mesmos desejos que todas as outras mulheres suscitam em viver um dia: o gozo pleno da felicidade.

Sempre que falo de mulheres, especialmente as pretas, volto toda a minha observância, afeto e respeito no que discorro. Seria extremamente desonesto e insensato falar de um lugar apropriando-me de uma fala que não a minha e dando ganho de causa ao que não experiencio. Isso não seria sororidade. E é por falar de sororidade que aqui estou mais uma vez, discorrendo linhas para falar de amor, amor puro e sincero, amor despretensioso, amor de entrega, e, sobretudo, respeito.

Falar de amor por vezes soa piegas, inapropriado, ou até mesmo desnecessário. Rebato. Sim, rebato, pois, em tempos tão austeros, falar de amor é contraventor. Amor para a mulher preta é ultrajante. Acreditem, há quem pense que é um ultraje amar; amar uma mulher preta.

O ‘pecado original’ de amar uma mulher preta desloca o lugar social de quem se põe ao seu lado, já que não somos dignas de afeto.

Qualquer que seja o tempo, o afeto proporcionado pela relação que envolva uma mulher negra torna-se passível de desprezo e chacota social. Alimenta-se no imaginário social que a mulher preta é mais fervorosa no sexo, e com isso, é objeto de desejo para os infortúnios mais despropositados que atuam no campo sexual-antropológico (e depois há quem não entenda por que as mulheres pretas são as mais vitimadas pela violência sexual no Brasil). Isso encontra-se eivado no tecido da sociedade, sendo herança do nosso passado escravista, tão ensejado diuturnamente.

As denotações que atuam no campo da sexualidade são muito mais vibrantes e calorosas das que atuam no campo do debate racial. Aqui, me aventuro a falar de ambos quando falo do amor da/para a mulher negra.

Já discorri em outras linhas sobre a representação sexual da mulher negra e dos inconvenientes que isso nos traz. Assim como já me detive a discorrer sobre relações de raça e gênero. E de modo mordaz, apontei situações nas quais somos a todo momento violentadas por não ser nosso o direito exclusivo sobre os nossos corpos.

A quem confere se não as nós mesmas o direito de amar e sermos respeitadas por isso? O direito de amar e ser amada dentro de um contrato social ainda é uma realidade muito aquém do esperado por muitas de nós. E por menor que seja esse efeito simbólico de constituir uma relação matrimonial, isso tem tido um efeito impactante nas nossas vidas.

Somos mulheres, muitas, frutos de relações afetivas furtivas, filhas de mães solteiras, que não gozaram do direito ao véu e grinalda. O estado civil altera todo o sentido socioantropológico que vem sendo resgatado pelas/para as mulheres pretas. O casamento, para algumas de nós, não é um caprichinho, e sim a afirmação de um valor social que sempre nos foi tacitamente negado.

Por mais estranheza que o que escrevo aqui te cause, isso faz parte da nossa realidade há incontáveis e longos anos. Não lembro de precisar reportar-me tão enfaticamente às questões que atentam à mulher negra que não fosse requerendo e retomando uma fala que insistentemente pleiteia um espaço de poder. Falar de amor é também requerer um espaço de poder que nos foi/é negado.

Frente às conquistas que temos alcançado, falar de amor abre uma seara sociológica que apenas principia discussões maiores a serem alavancadas. Estas mal-traçadas linhas são apenas uma gota do que almejamos e ansiamos de modo sincero e justo.

Não esperamos estar indignamente nos rótulos de cervejas, tendo nossa imagem vendida de modo vil. Muito menos sermos representadas de modo esdrúxulo por homens que transfiguram um estereótipo de mulher negra que em nada contribui ao que buscamos ser.

Desejamos, sim, a dignidade de sermos respeitadas e amadas superando assim o acordo tácito que nos violenta física e simbolicamente. Por isso, falemos de amor, respeito e sororidade entre nós e para nós.

Fernanda Torres, o machismo e sua irritação desamparada

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Hoje, ao acordar, quase como de costume, acessei a internet e a primeira notícia que vi foi sobre um texto que a atriz e escritora Fernanda Torres publicou no blog da Folha, site do qual ela é colunista, falando sobre sua irritação frente à vitimização do discurso feminista.

Fernanda Torres

Logo pensei: ora, não deve ser nada de tão aviltante o que ela publicou frente à figura que representa e o canal que veicula suas publicações; vindo de onde veio, só podemos esperar isso mesmo. Resolvi ler o texto para tirar minhas próprias conclusões. E em resposta a atriz, escritora e colunista da Folha, escrevo esse texto.

Cara Fernanda, concordo contigo quando diz que “a vitimização do feminismo te irrita mais do que o machismo”. Devo concordar também com o fato de você afirmar textualmente que, “Não me incomoda o machismo, confesso, talvez seja uma nostalgia de infância que carrego. A geração que me criou era formada por machões gloriosos, de Millôr a Miéle, irresistíveis até nos seus preconceitos”.

Pode parecer estranho, mas o machismo se faz nostálgico quando não atinge nem vitimiza em larga escala mulheres brancas, de classe média alta, muito bem nascidas, mas tão bem nascidas, que só precisou ter saído do ventre de Fernanda Montenegro para ter acesso às benesses que só você tem e usufrui. Mulheres como você nunca vão sofrer na vida o desamparo e a agressão que o machismo dispensa a quem não nasceu no mesmo berço esplêndido que você. Nunca há de passar na sua cabeça de escritora quantas das mulheres têm sido assassinadas e violentadas por seus companheiros, pais, irmãos, colegas de trabalho, vizinhos e tantos outros homens que lhes são próximos. Sim, porque a violência contra a mulher parte de quem lhe é mais próximo.

Não há de pairar sobre ti também a dor da violência verbal ao ouvir um fiu-fiu, que a sua babá Irene, a tal mulherão, ouvia quando saía contigo pelas ruas. Tampouco, sentirá a dor que só o estigma da violência sexual a trará, deixando marcas que jamais se apagarão sobre seu corpo, sobre sua alma e seu inconsciente; elas sempre estarão ali lembrando-a de que foi vítima de uma violência tão brutal por ser mulher, e muitas das suas dirão que foi por merecimento, e que no mínimo você deve ter provocado usando uma saia curta, uma blusa decotada, um vestido que denotasse a sinuosidade do seu corpo sutil.

Foi simultaneamente interessante e assustador perceber a veemência que a sua fala traz sobre sua simpatia com o machismo, a ponto de considerá-lo nostálgico. E partindo desse pressuposto, o machismo pode até ser nostálgico, mas quando ele não nos atinge, ou melhor, não só quando ele não nos atinge, mas quando não nos compadecemos com a outra. Quando afirmamos publicamente que o machismo irrita muito menos que os discursos sobre a “vitimização feminista”. E isso só denota o egoísmo que lhe envolve como ser humano incapaz de se compadecer com a violência que o machismo provoca em grandes e estratosféricas escalas. Afinal de contas, boa parte dos homicídios no Brasil são oriundos do machismo. O mesmo que lhe parece simpático.

A tal “vitimização feminista” que tanto fere os seus brios tem sido um grito de socorro das muitas mulheres, que ao contrário de você, tiveram a chance de nascer Fernanda Torres, ser uma mulher que ostenta o patrimônio da cor – a branquitude num país racista como o Brasil lhe é de todo conveniente – uma mulher que nunca precisou deixar os filhos em casa para cuidar dos filhos de outras mulheres, assim como a sua babá Irene provavelmente fez com os delas enquanto cuidava para que você tomasse banho, fosse bem alimentada e fizesse as lições de casa.

Fernanda, assim como você, sei que existe zilhões de mulheres que pensam do mesmo jeito e sob a mesma lógica de que o mundo é esse cercado em que você vive, cheio de seguranças e babás, em que nem o porteiro do prédio onde mora levanta a cabeça para cumprimentá-la em sinal de obediência/subserviência porque simplesmente você é branca e bem nascida, ou como dizem por aí, você é a madame.

Então, peço-te encarecidamente, da próxima vez que publicar um texto com esse caráter, jogue suas cartas fora. Sim, suas cartas. As cartas de alforria das serviçais que te servem e sofrem desse machismo simpático e nostálgico. Libertem-nas do desagrado de conviver com um ser insensato e sem nenhum espírito de humanidade para com a outra. A Irene vai te agradecer por isso.

 

 

 

 

Considerações sobre o afrogenocídio em curso no Brasil

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Há pouco mais de um ano no bairro do Cabula, em Salvador, aconteceu uma chacina que exterminou doze jovens na localidade de Vila Moisés. Um ato arbitrário, covarde e cruel perpetrado pela PM baiana e abertamente aplaudido pelo governador do Estado, senhor Rui Costa, quando afirmou publicamente que a ação dos policiais assemelhava-se ao de jogadores de futebol: “é como um artilheiro em frente ao gol, tem que decidir em alguns segundos como é que ele tenta botar a bola para dentro do gol”, (…) “depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado”. Diante de tal declaração, não há argumentos que contradigam o posicionamento do Estado frente à truculência/violência cometida por policiais no estado da Bahia, e não só aqui.

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De todo modo, nos assombra pensar que se um chefe de Estado se posiciona desta maneira, não temos a quem recorrer frente à situação de calamidade em que nos encontramos. É lamentável dizer, mas situações como estas são recorrentes na cidade de Salvador, bem como em todo o país. Os casos de assassinatos de jovens pretos nas periferias das grandes cidades saltam a olhos nus frente às estatísticas e os altos índices de violência na sociedade.

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0Parte-se do princípio de que “todo pobre e preto é vagabundo” e que “bandido bom é bandido morto”, o que confirma o modus operandi das polícias brasileiras em todo o território nacional.

O mais aviltante é ver que a força que o Estado exerce suprime qualquer reação contrária à sua arbitrariedade. Pois no acontecido de Vila Moisés, a grande mídia teve acesso às notícias, o caso foi exibido e noticiado nacional e internacionalmente, movimentos sociais fizeram frente ao acontecido, comissões de justiça organizaram moções de repúdio à violência do braço-armado estatal e de apoio às famílias vitimadas. E, um ano depois do acontecido, por uma infeliz coincidência, era carnaval, e, como presente à população, o governador do estado, presenteou-a com uma festa momesca “democrática” – um carnaval sem cordas para os foliões pipocas –, um investimento de mais de R$ 60 milhões, como um cala-boca para a população que há um ano fora violentada pela força policial.

(Isso não significa que a população de Salvador esqueceu-se do primeiro aniversário da chacina. Houve quem fosse ao Curuzu no dia da saída do bloco Ilê Aiyê para constranger o governador sobre o ocorrido há um ano.)

O que é isso, senão a política do pão e circo para todos? Ou melhor do circo, pois o pão e o circo eram dados pelos imperadores romanos, os governantes atuais só dão o circo. Quer comer pão? Vá comprar!? A conjuntura social em que vivemos só vem a ratificar o estado de calamidade pública a que estamos submetidos. Truculência, arbitrariedade, agressões, política de extermínio, esses e outros compõem a prerrogativa máxima do braço armado do Estado, que é a polícia.

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Não obstante disso, contamos ainda com a virulência social em que tudo isso se transforma em estado de repressão.

Casos como o de Vila Moisés não estão estanques ao que acontece cotidianamente. O assassinato do menino Joel, no bairro do Nordeste de Amaralina, ocorrido no ano de 2010 é mais uma prova cabal de quanto a força policial é grotesca e assassina. Apesar de ser noticiado, e o caso ter servido de inspiração para um documentário, as autoridades negaram-se a reconhecer a ação desastrosa dos policiais envolvidos e, em represália ao acontecido, impediram que o documentário sobre a vida do garoto fosse exibido aos moradores no bairro onde ele morava.

Esses e outros casos ilustram o cenário de guerra em que se encontra o estado da Bahia, mas não só ele, o Estado nacional, que consente que forças policiais ajam com truculência e arbitrariedade contra a população sob a justificativa de prender bandidos e promover a paz.

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E para além desses casos de violência policial, não há como não interseccionar o quesito raça em ambos os casos, e isso se faz notório inclusive nas notas de jornais quando se faz referências a “jovens” quando se trata de pessoas de classe média/classe média alta e brancas, e quanto falam de “menores” quando se referem aos adolescentes pobres, por redundância negros, oriundos das zonas de pobreza.

A relação raça/cor mais que se imbricam na ação policial. O Mapa da Violência 2012 nos mostra claramente qual a cor do homicídio no Brasil.

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Com base nesses dados, e nas ações que são perpetuadas no nosso cotidiano, não nos resta dúvida de qual alvo a polícia escolhe como “bandido”.

O propósito fiel de exterminar negros no Brasil está se firmando há séculos. Pois, esta era umas das premissas do nosso projeto de nação pós-abolição da escravatura, e quando da importação de europeus como mão de obra barata para compor o quantitativo de gente para o trabalho livre em algumas regiões do país. A tendência era povoar o país com europeus, exterminar negros e ao longo dos anos extinguir a mancha deixada pelo escravismo no Brasil. Projeto este que foi fadado ao fracasso, pois a escravidão sozinha não cuidou de eliminar toda a raça negra do país, tão logo as investidas para seu extermínio se ergueram por meio de ações estatais que impermeabilizaram a inserção social do grupo, mantendo-os à margem das garantias e direitos sociais.

Isso está refletido nas ações que o Estado perpetuou como garantia de solapar os direitos necessários à população negra, e a força policial é uma das garantias de extermínio da população negra no país.

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O que Nina Rodrigues, ancorado pelos estudos de Cesare Lombroso, fez no século XIX, se ratifica no plano de governo de Rui Costa e seu secretário de segurança pública. Guardadas as devidas proporções, o cenário se ressignifica, pois o racismo com o passar do tempo se sofistica.

 

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O projeto político que Nina Rodrigues e demais construíram há dois séculos, se firma com doses de chumbo nos dias atuais. A perpetuação do racismo vilipendia a população negra e a abate como porcos. A violência policial é um sinal grotesco dessa política de estado que reafirma seu compromisso vil fundado nas bases do extermínio sob a égide de promover a paz. Pois, crê-se na máxima de que “bandido bom é bandido morto”. Mas qual é a cor desse bandido?

No Brasil esse bandido tem raça, cor e endereço. O preto, pobre, da periferia nunca deixará de ser a bola da vez do grande lance futebolístico, em que nós estaremos com espectadores e impossibilitados de promover ações enérgicas contra quem que escolhe pelo tom de pele seu alvo.

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Da Mulata Assanhada à Faixa Amarela: o racismo, o sexismo, a cultura de violência e as molas propulsoras da Música Popular Brasileira

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Semana passada, estava assistindo a um programa de TV exibido no canal fechado Bis sobre uma turnê do DJ holandês Tiësto em Kuala Lumpur, na Malásia. Em seguida, começou um outro programa musical de samba cuja cena inicial foi um clip em que o cantor e compositor Dudu Nobre cantava a música Mulata Assanhada, composição de Ataulfo Alves, na qual um dos trechos diz o seguinte: “Ai, meu Deus, que bom seria/Se voltasse a escravidão/Eu comprava essa mulata/E prendia no meu coração.”

Distraída que estava, fiquei estupefata ao ouvir a composição e, ato contínuo, me dediquei a buscar sua letra e ver em versos o que sua composição trazia.

A música foi interpretada por grandes ícones da MPB, Elza Soares & Thiaguinho, Elis Regina, e por assim sê-la está passiva de ser questionada. Só que não.

Ciente da “licença poética” concedida aos compositores para rabiscarem em verso e prosa as maiores atrocidades em ritmo musical, sei que confrontar o que se entende como MPB é quase um desacerto, senão um desacato, ou quem sabe até um crime de lesa-pátria. Mas, devo confessar que, diante de tamanha atrocidade expressa na letra desta música, não me permiti ser passiva, como assim o fiz diante de tantas outras que cantarolaram por aí.

É notório que a escravidão no Brasil durou oficialmente 388 anos – e estamos no processo moroso de reparo social há apenas 127 anos; a PEC das Domésticas , o sistema de cotas  e os ataques ao Programa Bolsa Família  estão aí para mostrar o quão tenso e conflituoso é tentar mexer – ainda que timidamente – no nosso passado escravista a fim de reparar os nossos crimes históricos. Ou seja, ainda estamos bem longe de promover cidadania e garantia de direitos equânimes aos oriundos do regime escravista. Tão logo, musicar um evento desastroso para a nossa sociedade atrelando a isto relação de amor é de uma conotação agressiva, que trata de violar os direitos mínimos necessários adquiridos por aqueles que foram vitimados pelo regime. É então, tratar com descaso o ocorrido e invalidar a luta social estabelecida em prol da sua extinção.

Lembrei-me da cena de abertura do primeiro capítulo da minissérie Suburbia, em que Érika Januza estreou na carreira de atriz interpretando uma trabalhadora doméstica que foi estuprada pelo patrão ao som de uma música de Roberto Carlos. A Rede Globo, como sempre, prestou mais um enorme desserviço à sociedade brasileira ao nos fazer acreditar que estupro e sexo são a mesma coisa. Gilberto Freyre pouco é bobagem.

Falar da escravidão com o descompromisso e sem se ater à tragédia que proporcionou é de uma leviandade sem precedentes, pois tende a invalidar conquistas promovidas por políticas de reparação que há muito tentam se firmar.

E há um propósito fiel nas composições que retratam situações do cotidiano, e até mesmo eventos fatídicos e de tragédia com tamanho desdém que se isentam de qualquer responsabilidade. Pois, trata de garantir que o fosso e as assimetrias de classe/cor se esvaiam a ponto de criar pontes nas conjunturas sociais que se valem da violência a fim de corroborar com o desnível social que nos achaca.

Mas não só da escravidão se atém os compositores. A cultura da violência ultrapassa as fronteiras do permissivo e invade o cotidiano das pessoas a fim de pormenorizar sua prática. Ao que temos então a música Faixa Amarela, de composição de Zeca Pagodinho, que traz o seguinte: “Mas se ela vacilar/ dou um castigo nela/ dou-lhe uma banda de frente/ Quebro quatro dentes e cinco costelas/Vou pegar a tal faixa amarela/Gravada com o nome dela/E mandar incendiar/Na entrada da favela.”

A composição incute no imaginário popular que a violência contra a mulher não só é comum, mas necessária, pois torna digno de ser quem o pratica. Mais uma vez cantada em verso e prosa, se traveste de amor um ato de violência que se justifica numa sociedade em que esta prepondera.

Ou seja, tratamos aqui de abordagens que partem do nosso passado histórico e recaem sobre o senso comum.

A explorar um pouco mais desse vasto universo musical, vos trago outra composição muito conhecida e interpretada por um das maiores figuras da música brasileira, Elis Regina: “Nega do cabelo duro/Qual é o pente que te penteia/Qual é o pente que te penteia/Qual é o pente que te penteia, ô nega”.

Semelhante a essa há também, “Nega do cabelo duro/Que não gosta de pentear/Quando passa na Baixa do Tubo/O negão começa a gritar”, interpretada por Luiz Caldas, grande músico baiano – segundo dizem -, considerado o “pai da Axé Music”.

Perante os padrões de beleza que se configuram, tratar a diversidade com deboche e desprezo é firmar o contrato social que garante que o bom e o belo é ser branco e ter cabelo liso, adiante isso foge-se à regra.

Questionar o inquestionável é ferir os brios de um grupo privilegiado que por ter assegurado o direito que os acomoda num conforto social ditado pelas assimetrias de classe, cor e gênero.

A música é mais um veículo a transmitir essas assimetrias, e através dela se estabelecem padrões de beleza, regras sociais, estilos de vida em comunidade, e tantos outros fatores que acomete quem está em desvantagem frente ao privilégio de não ser fruto de um sistema de classe que não preza pelo respeito e diversidade entre os povos.

A variedade musical da nossa sociedade nos mostra o quanto ainda estamos confortavelmente ancorados nesse sistema, que ainda preza pela cultura de violência, pela negação social, e, sobretudo em tratar como insólito e inválido o outro.

Quando me descobri feminista

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Devido a algumas percepções do meu cotidiano que me afet(av)am (in)diretamente, debrucei-me sob leituras que julguei pertinentes e necessárias a fim de entender o que me cerceava como mulher, e o que me rotulava por ser mulher e negra. Lembro que esse foi o pressuposto para eu pensar minha condição social no mundo no qual estava inserida, e, de posse dessas leituras, meu inconsciente retomou algumas situações do meu passado e da minha memória afetiva que delineou meu posicionamento político diante de determinadas fronteiras.

A princípio, devo recordar uma situação que me ocorreu quando eu tinha oito anos de idade, e que me fez pensar por que e de qual lugar eu tomava para mim a condição de ser feminista (por mais que eu não reivindicasse esse rótulo para mim completamente).

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Certo dia, meu pai chegou do trabalho, foi ao banho, e minha mãe, atrelada com os afazeres domésticos, imediatamente largou o que tinha à mão, foi esquentar a janta para logo em seguida pô-la na mesa para ele. Eu, com oito anos, não concebia o porquê de uma pessoa, sendo ela mulher, ter de esquentar a comida para outra, no caso o homem, sendo que se ele estava com fome, ele deveria esquentar sua própria comida. Naquele tempo, eu não entendia muito bem como as situações transcorriam em meio à ordem social vigente para os nossos padrões de convivência numa sociedade patriarcal. Esse foi o fio da meada que me circundava.

Em momento oportuno, me apropriei de cabedal teórico sobre o feminismo negro, e pude perceber quais eram os demarcadores sociais que subjuga(va)m a mulher, em especial a mulher negra, à mera condição de subalterna.

Tão logo, vi a necessidade urgente de questionar, debater e sobrepor a ordem social que havia demarcado o meu lugar na sociedade, e, assim, partir para o enfrentamento diante das condições que me foram dadas.

Foi o que eu fiz: mergulhei a fundo em leituras de Bell Hooks, Alice Walker, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Chimamanda Adichie, Neusa Santos Souza, dentre outras, a fim de burlar o círculo vicioso no qual estava envolta e romper com os rótulos que me foram atribuídos.

Primeiramente, fiz uma imersão nas leituras, estas, por sua vez, como numa digressão psicanalítica, retomaram situações que me ocorreram quando da minha infância, mas que, por conta da imaturidade pueril, não me davam argumentos necessários ao que acontecia – momentos semelhantes aos acontecidos quando dos meus oito anos, e que por ora não compreendia. Aos poucos, fui relembrando casos e situações do meu espaço doméstico visto sob a ótica da normalidade, mas que me provocavam extremo furor. É importante salientar que devo retomar alguns dados da minha vida cotidiana familiar para que se possa entender o porquê da minha altivez e rebeldia, que mais adiante serão esmiuçadas.

Sou a filha mais nova de quatro irmãos – um já falecido – e que foi criada sob a égide da religiosidade cristã e do militarismo. Sempre superprotegida por ser a mais nova, a caçulinha da família, não só por meu pai, mas também pelos meus irmãos, tive uma formação escolar amparada pela educação militar. Ou seja, o militarismo extrapolava as fronteiras do meu ambiente familiar. Isso foi o suficiente para adestrar-me socialmente.

Era uma lição diária o que meu pai repetia para mim: eu deveria estudar, trabalhar, não casar e acima de tudo, nunca depender – financeiramente – de homem nenhum. Essa foi a premissa da minha criação até a idade adulta. E assim cresci, com esse lema que transcendia os limites do meu cotidiano. Um cotidiano cercado de subalternidade, submissão e obediência.

(Era bem difícil entender como um homem machista, autoritário, violento por definição, que submetia a minha mãe a uma verdadeira ditadura, podia ao mesmo tempo dizer que eu não deveria lutar para ter o meu e não depender de homem para nada porque “homem não presta”. Mas isso eu já expliquei em outro texto )

Estudei, trabalhei, não casei, e sempre busquei por minha autonomia financeira. Pensar o contrário era reviver tudo que minha mãe passava, e que eu repudiava. Em meio ao instrumental que meu pai se incumbiu de oferecer-me, eu o arguia diante os seus feitos. Ele ensinava aos meus irmãos a tratar com desrespeito as mulheres da rua, a sentar de perna aberta, a não conter sua necessidade fisiológica de urinar e aliviar-se no primeiro poste, a namorar logo cedo para firmar o ethos da masculinidade, ao tempo em que eu deveria ser prendada e recatada, para que ninguém se atrevesse a fazer comigo o que os meus irmãos faziam com as garotas da rua. Tão logo passei a questioná-lo. O sonho então se transformou num pesadelo. A menina obediente criada como um garoto, que não deveria se sujeitar a vontade de quem quer que fosse, agora passaria a questionar sua posição de macho alfa, e não mais aceitaria seus desmandos. A altivez e rebeldia agora tomavam conta de mim de modo tão palpável que se tornava a cada dia assustador.

Onde estava aquela criatura dócil e dedicada que nada questionava? Confesso que a adolescência é uma fase de imenso furor na vida de qualquer ser humano, pois a audácia e a altivez lhe são peculiares e desafiadoras. O que foi fundamental para eu travar um campo de batalha no meu âmbito doméstico-familiar, diante os questionamentos que me cercavam, a vida que levava, os desmandos a que era submetida. Advém daí tamanha rebeldia e altivez. Questionar era (é) para mim fundante em qualquer relação. O direito de questionar me faz ser quem eu sou, e, sobretudo, firma o contrato de uma relação horizontal para que se possa estabelecer um diálogo necessário.

E é por questionar e defender o direito de assim fazê-lo que fui buscando para mim a identidade feminista – ainda que, como já disse acima, eu não reivindicasse o rótulo. O direito de não ponderar a igualdade de gênero perante os indivíduos, o direito de contrapor ideias que têm como premissa a razão e o óbvio da objetividade masculina. O direito de achar estranho e anormal as estatísticas que apontam os elevados níveis de violência contra as mulheres.

Ou seja, lá no auge da minha infância havia uma veia feminista que esbarrava no autoritarismo e na falta de informação necessária às arguições a que hoje disponho. Lá, na minha infância, estava guardado o meu feminismo. Um feminismo que não compreendia bem o sentido e a ordem das coisas, mas que se intrigava com as relações que eram constituídas. Sem saber fazer o devido uso dos argumentos (afinal de contas, eu era uma criança), mas que percebia a estranheza presente nos meandros da relação machista do meu pai para com minha mãe, o que me causava estranheza ver que cabia a minha mãe as tarefas domésticas, enquanto que meu pai dizia que homem não lavava pratos; me causava estranheza quando meu pai inseria meu irmão mais velho na vida sexual do modo mais comum e antigo que os pais se utilizam para assim fazer, ao tempo em que eu, como menina, deveria me preservar e privar, inclusive do casamento, um mal nada necessário.

Foi urgente a necessidade de repensar minha condição perante o mundo, pois foi diante dele que se ergueram as minhas dúvidas mais insurgentes. Foi no meio familiar, escolar, na vida comunitária, no espaço de trabalho que se ergueram meus questionamentos diante o que me era posto.

Quando meu pai dizia que eu, ainda criança, tinha de cuidar dos meus sobrinhos, ao tempo em que para meu irmão não cabia a mesma obrigação. No momento em que, por estudar em colégio militar, devia obediência ao superior pela patente e pelo status de masculinidade. No instante em que sofri meu primeiro assédio, aos treze anos de idade quando estava a caminho da escola. Quando fui por diversas e incontáveis vezes assediada sexual e moralmente no trabalho, por ser mulher, negra e, por conta disso, considerada e tratada como inferior socialmente. Quando, na família, não aceitaram o fato de eu ter estudado e ter sido a primeira a ingressar na faculdade, ter um emprego público e uma estabilidade que me propiciava uma comodidade necessária, ao tempo que meu irmão mais velho não gozava das pequenas benesses que arduamente adquiri (que a meritocracia não seja a medida de todas as coisas, mas neste caso específico, esta muito me serviu). Quando comecei a delinear meus anseios nos meus escritos e fui arbitrariamente questionada sobre a minha formação e vinculação partidária, por acharem que por ser mulher e negra, eu não tinha competência e inteligência necessárias para defender minhas ideias sem o esteio de um diploma ou grupo de militância.

Foi diante tudo isso que julguei mais que necessário o meu posicionamento político frente à sociedade que me relega ao rés do chão que me desampara. Parto da premissa de que assimetria social não se repara com política de governo, e sim de Estado. Uma política de Estado efetiva que se insira nos moldes de uma constituição cidadã, e não de um Estado com prerrogativas legais fundadas no machismo contemporâneo e arcaico, e que veicula a violência contra a mulher como mera estatística; uma violência amparada em números.

Pois, cabe-nos pensar o quão violenta é a permissividade do Estado em não punir com severidade atos infratores de agressão à mulher. Situações de estupro, em que muitas delas, senão todas, são vistas como motivadoras do crime e não como vítimas.

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A esquizofrenia social nos conforma na ideia de que nós, mulheres, achamos normal e até mesmo comum o fato de uma em cada dez mulheres ser agredida por seu marido/companheiro dentro do seu espaço doméstico, e tal ação ser justificável por se estabelecer aí uma relação conjugal (“em briga de marido e mulher, não se mete a colher”). Ou seja, partilhar um espaço doméstico sustenta a premissa de que a mulher pode sim ser propriedade do homem, e no caso ou eventualidade desta ser cobiçada por outro, a culpa é única e exclusivamente dela que “não se deu ao respeito”.

RESPEITO

Cremos no fato de que os crimes passionais movem-se pela paixão obsessiva, mas não atentamos que esta se firma na lei colonial que fala sobre o crime contra a honra, que dizia que o marido tinha o direito de matar sua esposa em caso de traição por parte desta. Essa era a prerrogativa das Ordenações Filipinas, da época do Brasil Colonial, que perdurou no país até meados da década de 1920. O que mudou de lá pra cá? A conjuntura legal estabeleceu novos parâmetros, no entanto, a configuração social em muito se assemelha.

Sei que diante tal situação houve avanço no sentido de minorar os efeitos da violência contra a mulher. Mas o ganho social ainda é ínfimo diante da tamanha desvantagem na qual nos encontramos.

Não devo aqui desconsiderar todo o esforço investido com ações em prol da igualdade na garantia de direitos entre homens e mulheres, mas ainda estamos muito aquém de algumas questões.

O desserviço prestado em diversos campos da sociedade nos exibe claramente que ainda estamos firmados em contratos sociais que prezam pela assimetria de gênero. E podemos facilmente notar quando adentramos o campo da saúde, pois os índices de violência obstétrica só ratificam que ainda há muito que prosperar.

Deste modo, devo aqui dizer que não reivindico para mim a condição de feminista por modismo ou fetiche. A transversalidade em que o feminismo tem se instaurado perpassa toda a conjuntura que lhe insere num único viés.

As relações de poder instauradas no tecido social reverberam que ainda há muito que se fazer, e toda atividade laboral é extenuante. E como não ser diante de tamanha necessidade de representar o diverso, o que não compõe o padrão?

Não se adequar aos moldes de uma identidade de gênero que zela pela masculinidade heteronormativa, cristã, cis e branca é afrontar os direitos já constituídos de quem o é. Por isso, reafirmo a necessidade de repensar qual paradigma vingamos quando arguimos essa posição como única e formadora de padrões oriundos de um círculo excludente e violento, ensimesmado de razões que solapam o direito à cidadania e o livre pensar quando estamos fora desse padrão.

E mais uma vez ratifico que devemos confrontar todo e qualquer pensamento que nos acomode na qualidade de minoria, no seu sentido semântico. Não somos minoria. Reunamo-vos em prol de uma verdadeira e válida equidade de gênero.

Reafirmemos o compromisso de promover ações que caibam no bojo social vigente, e, sobretudo, assegurem o direito de ser mulher na instância que nos cabe. A mulher que trabalha, que estuda, que é arrimo de família, a que tem marido, a que é mãe solteira, que escolheu não ter filhos, que é cis, trans, hetero ou homoafetiva, que pretende casar, que preza por sua liberdade sexual.

Que não prepondere aqui um estatuto do privilégio, e sim, a garantia de direitos que prezem pela igualdade de gênero, e acima de tudo, se sobreponha aos ditames socialmente postos sobre a mulher.

É pensando nisso que retomo minha condição de feminista.

 

 

 

 

“O dia em que a Terra parou”

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Reuniões desmarcadas, contratos de trabalho cancelados, negócios desfeitos, relacionamentos amorosos em crise, amizades estremecidas, compromissos casuais por hora também suspensos. Um simples “bom dia” deixou de ser dado porque o WhatsApp está desativado por 48h no Brasil, em virtude de uma decisão judicial.

Hoje, acordei e, ao ligar meu celular, fui bombardeada com mensagens sugerindo a instalação de outros apps na tentativa de “manter a comunicação”, visto que o “zap” parou. Não sabia se ria ou se tentava discursar filosoficamente sobre a dependência quase química das pessoas a um equipamento tecnológico, e tão recente nas nossas vidas quanto é o celular e todas essas novidades que pululam nas prateleiras das lojas e nos anúncios publicitários todos os dias, enfim.

A “aplicativização” (um caso grosseiro de neologismo) da vida é algo que tem mudado a vida das pessoas. E quando digo “mudado”, estendo a discussão que parte do melhor para o pior sentido que isso possa ter. Quase ninguém mais se dá ao trabalho de procurar nada com paciência. Há aplicativo para tudo: para rastrear correspondências nos correios, para movimentar a conta bancária, para pagar a fatura do cartão de crédito, para medir a frequência cardiorrespiratória durante a corrida noturna, para ver os filmes em cartaz e comprar ingressos de cinema, para jogar xadrez, para identificar chamadas telefônicas feitas a partir de números não gravados na agenda do celular, para ler livros em formato ebook ou epub, para pegar receitas culinárias, para chamar um táxi, para saber quais ruas e avenidas estão congestionadas e quais estão livres. Somados a todos estes (e muitos outros que eu nem sei que existe e para que servem), há aplicativos para quem está na pista à procura de sexo casual e descompromissado e para “fazer amizades” – seja lá o que isso signifique. Aquela história de cuidar do corpo, tomar um banho de uma hora, vestir a lingerie da sacanagem e uma roupa provocantíssima por cima, colocar aquele perfume, dar um trato no cabelo, por uma maquiagem específica de “tô na pista pra negócio” e sair para caçar não existe mais.

A coisa é tamanha que nós não sabemos mais viver sem recorrer a esses benditos aplicativos. Quando um deles (ou todos eles) ficam desativados sabe-se lá por que razão, nós só faltamos rasgar as nossas vestes de desespero. E agora? O que será de mim? Como é que eu vou viver? O que eu vou fazer? E se aquela pessoa que sempre visualiza as minhas mensagens e nunca respondeu a nenhuma delas resolver fazer isso hoje? É o horror, o horror, o fim dos tempos, O APOCALIPSE! Seremos jogadas na fornalha seca, onde haverá fogo e ranger de dentes…

Eu diria até que seria um caso de endogênese digital. Sim, porque a endogênese corresponde à qualidade do que se forma no interior de algo. Ou seja, a endogênese digital prepondera que a qualidade de nossas vidas e por consequência nossas relações estão imersas em sua era digital e nada mais. Funciona como um processo celular – no sentido biológico da palavra – e não digital, do qual trata esse texto, mas a simbiose dos sentidos semânticos ratifica o que quero dizer em ambos os casos. A analogia tem validade. Mas como eu ia dizendo anteriormente, o uso de aplicativos hoje tem tornado a nossa vida um sucesso quando nos confere a capacidade de resolver quase tudo de que precisamos através de um único equipamento, o celular. Ou um fracasso quando nos denota a incrível capacidade que fomos perdendo ao longo do tempo de nos comunicar de modo mais objetivo com as pessoas, em que se constata o efeito sinestésico da vida; dar um oi pessoalmente, cumprimentar com um abraço, sair de casa para ir à pizzaria e voltar para comer a pizza em casa, discar no telefone o número de um táxi no momento de emergência, seja ela boa ou ruim. São ganhos e perdas ao qual estamos condenadas quando ingressamos nessa nova era digital. É o mundo líquido do qual nos fala Zygmunt Bauman.

E não que eu seja saudosista, piegas, ou até mesmo antiquada, mas confesso que sou da época – expressão que denota discretamente que minha geração já está pra lá de ultrapassada – que amigas se comunicavam por cartas. Sim, cartas, e todas manuscritas, é claro. O ato de escrever manuscritamente está quase caindo em desuso, pois, quando me arrisco, tenho a impressão de que vou desenvolver, no mínimo, uma tendinite (lembrei as minhas aulas de biologia sobre a lei do uso e do desuso de Lamarck, que disse que o uso constante causa hipertrofia e o desuso, atrofia). Mas ainda preservo as cartas, todas bem guardadas como símbolo de um tempo que sei, e lamento, não voltará mais. Aquele tempo em que, como disse Karnal, lambíamos muitos selos. Enfim.

 

Essa plasticidade que o mundo tem adquirido de lidar com quase tudo nos torna cada vez mais dependente e menos autônomos de nós mesmos. Esvai-se a capacidade mínima que possuímos de administrar coisas e pessoas num simples toque. A vida digital é assim. Tudo apenas num toque.

Mas não o toque singelo de dois indivíduos. É o toque que reconhece nossas impressões digitais e nos concede o acesso a um mundo inteiramente feito e comandado por códigos binários que se alternam na composição dos signos digitais. O biopoder foucaultiano.

O binarismo na era digital é o logos que rege toda sua dinâmica sensorial. O que na vida moderna é de uso único e exclusivo dos equipamentos. Ou seja, estamos fadados ao fracasso de sermos binários. O que em poucas palavras define-se em ser bom ou ruim, feio ou belo, doce ou amargo. A extensão da vida nos permite sermos muitos mais que isso. A vida nos deixa extenuantes de sensações e sentidos que extrapolam o limite do maniqueísmo. Não, não somos. Ainda que o mundo queira estabelecer esse muro simbólico, a fim de desafiar ou conformar os significados do caráter do ser humano, não somos interligados por efeito binário. E que bom.

Mas para além do binarismo tecnológico, o que aqui se faz redundante, mas necessária à compreensão por parte de quem os está lendo, desmoronamos numa cascata digital que determina desde o tipo de pessoa com a qual devemos nos envolver afetivamente, até ao que podemos antropofagicamente consumir: comida, bebida, leitura, estilo de roupa, tudo que se adeque para o nosso bem-estar social. Tão logo, isso envolve o ethos. A formação da nossa moral e caráter agora totalmente dependentes da era digital.

Percebamos o quão isso nos torna frágil diante um mundo que nos controla, nos vigia e nos cerceia tal qual um tribunal. Um mundo que ao lhe conferir acesso a essa rede de conexão mundial estabelece qual estilo de vida devemos adotar. Num modo bem otimista de pensar, estamos todas, infinitamente todas, sendo monitoradas e controladas pelo Big Brother tal qual foi concebido por George Orwell no livro 1984. Foi o que esse mundo se tornou, fonte de informações, notícias e dados que nos vincula a um único lugar, o WhatsApp. E aqui nos vemos presos a essa teia que nos limita a cada instante de ser quem somos, seres humanos.

E voltando ao título do texto, O dia em que a Terra parou, foi um sábio presságio feito por Raul Seixas, o eterno Maluco Beleza, a tudo que estamos passando hoje.

 

P.S. Abaixo segue um vídeo que é um comercial de um banco. Abrindo a ressalva de que não estou aqui fazendo propaganda gratuita, muito menos tentando alavancar seu índice de visualizações, e por consequência, ajudar a promover a imagem de um dos bancos que mais injetou dinheiro no período da ditadura civil-militar no Brasil (leiam o livro 1964: a conquista do Estado, escrito por René Dreifuss para entender o que eu estou falando). O que julguei interessante foi a mensagem transmitida no comercial, e que aqui se faz perfeitamente cabível ao que discorri no texto.

 

 

 

 

 

De repente, 30

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Semana passada, completei 33 anos, a idade de Cristo, mas penso que seja a idade de Cristo crucificado, morto e amordaçado. Logo explico.

Quando completei 30 anos, todo um conjunto de fatores se aglomerou e parece que o peso do mundo recaiu sobre mim. Sabe aquele lance de sentir o peso dos 30? Foi bem isso que senti, ou melhor, ainda sinto. É simples: constatei que passava mais tempo fora de casa, trabalhava em excesso, tantos finais de semana perdidos estudando. São tantas atribuições, que temos de correr mais do que a velocidade da luz pra dar conta. Acho que nem na época de colegial eu estudava tanto.

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E o saldo de tudo isso foi distanciamento dos amigos queridos e reuniões familiares, noites mal dormidas, horas do dia passadas sem uma refeição digna, esgotamento físico, cansaço e stress.

O engraçado é que tenho uma lembrança saudosa da minha infância. Sabe aquele poema que diz: “Ai, que saudade que tenho/Da aurora da minha vida/Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais”? Pois bem, remete a uma infância doce e despreocupada. Era um tempo áureo, sem preocupações, sem tensões e responsabilidades. Minha única demanda era ir à escola e fazer os deveres. De resto, era brincar de bate-lata, elástico, boneca (tive várias), casinha (a ênfase às prendas domésticas ainda na infância), sete pedrinhas, pique-esconde, salada de fruta, vôlei, futebol (sim, eu joguei futebol no campinho até os quinze anos de idade). Como toda criança saudável, eu tinha disposição de sobra para correr o dia todo e não me sentir cansada. Eu até gostava de praticar esportes. Fiz vôlei, basquete e judô até os dezesseis anos.

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Um traço que faz parte da infância de qualquer pessoa era o de comer besteira sem limite: doces, guloseimas, frituras, salgados. Eu até trocava um prato de arroz e feijão em casa por um pastel frito pingando óleo na porta da escola.

E o bom disso tudo é que, naquela época, eu não sentia absolutamente nada, a não ser cãibra ou “dor de facão” quando corria demais.

Pois é, esse tempo já se foi faz tempo. Cresci – e que bom por isso. Afinal de contas, a gente aprende na escola que todo ser vivo nasce, cresce, se reproduz e morre. Fora essa parte de se reproduzir, o resto tá seguindo a sequência.

Mas é de outra coisa que pretendo falar. Não vim aqui discorrer sobre a “aurora da minha vida” pura e simplesmente. Mas, sim, evidenciar as mudanças que ocorrem nas nossas vidas depois que completamos 30 anos.

São várias as mudanças, já que somos teoricamente pessoas adultas e responsáveis. Enfim. Quando completei 30 anos, já não tinha mais a mesma disposição de outrora, o que parece óbvio, tendo em vista que os anos se passaram.

Mas o que quero dizer é o seguinte: ao me deparar com o espelho enxerguei uma balzaquiana cheia de coisas. Coisas que até os 29 anos – a fase dos “vinte e poucos anos” – não eram tão evidentes.

Aquela farra toda da infância não era mais permitida, já que tão cedo constatei que estava com alguns probleminhas de saúde que juntos formaram um conglomerado a ponto de eu me sentir um Zé Meningite, parafraseando o samba da Banda Revelação. Eu tinha de tudo um pouco. Fui diagnosticada com gastrite, h-pylore, refluxo (“o pulso ainda pulsa…”). Daí, já não podia mais me esbaldar na comilança como antes. Guloseimas, nem pensar! Pois além disso tudo, com o peso da idade poderia acarrear colesterol alto, triglicérides alterado e o escambau.  Me submeti a uma cirurgia, em 2011, para retirada de um tumor que até então não havia se manifestado nem apresentado sintomas. Foi um choque na minha vida. Eu estava no auge da faculdade, fazendo várias formações, trabalhando à beça e me recusei a dar um repouso ao corpo cansado. Quando menos esperei, descobri que estava com lombalgia que anunciava uma hérnia de disco. Tive de fazer uma atividade para amenizar as dores, e me debrucei no pilates já que estava tão sedentária e a disposição deixada na infância havia esmorecido – hoje, eu não gosto de praticar esporte. Desenvolvi alergias para além das que já tinha. Eu, hoje, tenho alergia a sabonete e hidratante comuns. Isso mesmo, parece loucura. Eu também achei quando fui informada. Mas não podia mais tomar banho com sabonete comum nem usar um hidratante desses perfumados que tem por aí, pois ao longo dos anos minha pele estava ficando esgarçada de tanto ressecamento. Agora, é cuidado extremo com sabonete de “nhenhém” e creme hipoalergênico. Isso sem contar que há alguns longos anos eu tenho de fazer uso diário de protetor labial (não só para ir à praia. É no sol, na chuva e no casamento da viúva) e repelente. Isso é sério! Repelente é uma coisa que as pessoas só usam quando vão fazer trilha, vão passar férias no campo ou na praia. Pra mim, é uso diário. Tenho uma alergia a inseto horrível, que nem eu mesmo suporto. Já tive crises a ponto de tomar injeções de benzetacil. Tem um bichinho tão pequenino e tão vil chamado maruim que, apesar de ser tão pequeno, menor que piolho, provoca um estrago enorme nas minhas pernas.

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Ahhh, ainda tem a bendita rinite alérgica. Essa não me larga. Acho que eu e metade da população do planeta sofremos desse troço.

Pense que ainda jovem eu não podia ficar perto de tapetes, urso de pelúcia, desodorizadores de ambiente – esse último, tenho verdadeiro pavor por conta de uma irritação que tive em casa quando minha irmã resolveu deixar a casa perfumada. Outra vez, lembro-me de uma situação na escola que eu e um grupo de colegas faríamos uma encenação d’Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, e uma colega da turma conseguiu o figurino, aquelas roupas de época. Pois bem, as roupas estavam fétidas de tanto mofo, que tive uma crise alérgica na escola mesmo.

A situação é, de fato, periclitante.

Outro dia, resolvi visitar a sogra e fui arrumar a mochila para passar apenas uma noite. Quando dei por conta, na nécessaire, ao invés de colônia, desodorante, escova de dente, havia protetor labial, repelente, hidratante hipoalergênico, spray nasal e comprimidos para rinite. Um inferno de Dante. Era só uma noite, mas parecia que eu ia fazer trilha no Vale do Capão – que Deus me livre dessa hora, pois sou sedentária e suficientemente alérgica para querer passar longe daquele lugar.

É isso que acontece depois dos trinta. Sabe aquela sensação de quando estica o braço e algo estala? Não é crocância por gostosura. Na juventude, isso é só um mau jeito. Depois dos 30, minha amiga, corre e vai ao ortopedista porque pode ser uma bursite, um bico de papagaio ou coisa do tipo. Aquela queimação depois de comer de montão? Quando jovem, é só uma azia, que nós curamos com um antiácido ou chá de boldo. Na minha idade, virou refluxo. Aquele mau jeito na coluna após uma noite mal dormida se transforma numa lombalgia miserável, que dá numa hérnia de disco.

Pensam que exagero? É tudo isso e mais um pouco que só senti depois dos 30.

Além do mais, antes dos 30, tudo é permitido. A irresponsabilidade de ser jovem é permissiva até os 29. Nos 30, seu pai te põe pra fora de casa se não tem um emprego, as responsabilidades que antes não existiam agora pululam no colo. Se você tem um bom emprego, que ótimo. Se não, é um delinquente. Se tem casa, carro e estabilidade, que maravilha, é o filho querido. Do contrário, é um parasita desolado. Se já entrou e saiu da faculdade e quer fazer carreira profissional, é sensato. Se não, não quer nada com a “hora do Brasil”. Aos 18, a gente faz teste vocacional para saber qual rumo profissional seguir. Aos 30, acabou-se, é crise existencial minha “cumadi”. Tu achas que alguém vai oportunar um teste vocacional pr’um marmanjo de 30? Que nada, vai dizer que tá é com crise, ou no mínimo, “discaração”, treta para não trabalhar. Daí, começam as sessões, pois pra suportar tanta responsabilidade e cobrança só fazendo terapia.

Falo sério, sei que isso parece mais uma paródia desolada, mas é a mais pura verdade. Ainda dizem que nossa expectativa de vida está aumentando ao longo do tempo. Não sei pra quem! Já que, pra mim, aos 30 tá tudo de bom tamanho.

No meu caso então, mulher com mais de trinta, a idade de ter filhos já passou. A sociedade só falta me colocar um selo de infértil por ainda não ter tido filhos. E como a prioridade de boa parte das mulheres, e também a minha, tem sido ter um emprego, sucesso e estabilidade profissional, a maternidade vai ficando cada vez mais longínqua, quase inexistente. Pois, a médio prazo, penso que daqui há uns, quem sabe, oito anos, eu pense em ter filhos. Fazendo o cálculo, estarei com 41 anos – uma mulher de quarenta. Agora, pense: tamanha insanidade minha cogitar que posso ser mãe nessa idade já não tendo disposição agora. Subir cada lance de escada hoje é quase meia maratona, imagine daqui há algum tempo! E com filhos correndo pela sala? Loucura, loucura, loucura. Melhor esquecer.

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É isso que essa vida louca nos faz. Acaba com nosso bom humor, bom senso e tudo mais que a gente pode ter de bom. Ao longo dos anos, a constatação de que estamos mais vulneráveis e suscetíveis se faz cada vez mais iminente e assustadora. Eu, que já não tenho mais a singeleza da tenra idade, me dedico a tentar preservar com cautela o espectro de uma vida que nos aponta como saudável.

A autonomia da mulher que se toca

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Depois de um longo jejum literário, volto a escrever. Confesso que também estava sentindo falta dos meus escritos, mas os acontecimentos cotidianos me acometeram à suspensão da escrita por um tempo que nem eu sabia se era ou não indeterminado. Mas, estou aqui de volta e cheia de ideias prontas para serem transcritas.

E venho para falar sobre a autonomia da mulher que se toca. Poderia falar sobre diversas coisas, mas é que no último fim de semana andei pensando muito sobre essa questão: o medo intimidador que os homens têm da mulher autônoma. Mas não é tão-somente a mulher autônoma profissionalmente. Porque a mulher que é autônoma profissionalmente tende a estender essa autonomia para outros campos da vida além deste. E é aí que as coisas ficam mais “assustadoras”.

Vemos recorrentemente o achincalhamento social que as mulheres que defendem sua liberdade sexual sofrem. Numa sociedade machista, sexista, misógina e lesbofóbica como a nossa, ainda que anormal, isso é muito comum, o que não consente que naturalizemos os fatos.

Pois bem, foi pensando nesse medo intimidador que os homens ainda têm da mulher autônoma que resolvi discorrer vagas linhas na tentativa de entender um pouco do que se sucede.

A mulher que se toca é dona de si em todos os campos e aspectos possíveis em que essa discussão possa se estender. Pois, a mulher que se toca conhece seu corpo, suas sensações, seus desejos mais íntimos, suas vontades imediatas e as longevas, e, assim, ela coordena todo o jogo de movimento que possa envolver seu corpo numa relação afetivo-sexual. Porque a mulher que conhece seu próprio corpo não aceita nem admite ser puro objeto de foda do outro. Essa mulher quer o prazer no ponto mais extremo que se possa alcançar; ela busca o ápice do gozo no mais simples toque; e, para isso, exige que o homem seja competente na hora H e não priorize somente a sua satisfação pessoal.

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E essa mesma mulher, por ter autonomia sobre seu corpo, ao afirmar quem ela quer para si, e como ela quer ser tocada, é a mesma quem diz agora como serão dados os outros encaminhamentos na sua vida.

O ponto crucial da repressão feminina se encontra principalmente no campo sexual – é por isso que quase todos os xingamentos dirigidos às mulheres atacam a sua sexualidade, ainda que a sexualidade nada tenha a ver com a conduta reprovável desta ou daquela mulher: “puta”, “vagabunda”, “piranha”, “biscate”, “vadia”, “descarada”, “rodada”… Por isso, a distinção entre “putas” e “santas”. A mulher que é feita “pra casar” – a que deve conservar-se pura, e assim resguardar-se para o marido – se distingue completamente da “pra se divertir” – aquela que é feita para o usufruto do macho alfa no afã do seu impulso animalesco de afirmação da sua masculinidade como padrão heteronormativo.

Desfeita essa repressão no imaginário de uma mulher, ela passa a ser considerada um perigo social. Pois, se ela diz com quem e de que modo quer se envolver afetiva e sexualmente, ela passa a afirmar que não precisa da interferência masculina no seu espaço doméstico. Ou seja, não precisa de um homem para chamar de seu. Essa mulher pode seguir sozinha sem construir um enlace afetivo para dar conta da responsabilidade social que é ter um marido, namorado, companheiro ou qualquer outra coisa de igual significado. Sendo assim, esta mesma mulher não quererá mais depender de um homem financeiramente. Já que ela se toca, conhece o próprio corpo, escolhe como fazer sexo e obter prazer, ela escolhe que tipo de homem terá pra si, e, no desenrolar, sua autonomia sexual agora se estende para outros campos de sua vida para além do sexo. E é justamente aí que mora o perigo, segundo dizem.

2.2

Uma mulher que não precisa de um homem para trocar a lâmpada de casa não necessariamente é a mesma que se toca, mas o inverso é procedente. Tudo isso porque o universo social em que estamos inseridas ainda é eivado de razões e concretudes que esbanjam repressão social contra a mulher.

A mulher que se toca, porém, é a mesma que dispensa um homem na compra do supermercado, é a mesma que sai para trabalhar e volta pra casa toda cheia de si, por considerar o feito um grande ato libertador de tudo que possa lhe aprisionar como pessoa feminina que é. É a mesma que sai em busca do sucesso profissional por acreditar que isso é possível, e que suas capacidades estão além do preparo de um empadão de frango no almoço de família no domingo. Ou seja, essa mulher é a que tem ganhado espaço e notoriedade, ainda que num processo moroso socialmente.

E é justamente aí que se encontra seu poder intimidador. Que não é proposital, mas necessário, tendo em vista as razões que lhe acometem a viver substancialmente numa sociedade que solapa seus direitos mais elementares.

Então, eu, na certeza de que garantias de direitos equitativos socialmente é louvável e para todas, digo: mulheres, se toquem! Esbanjem sua sensualidade no ato de conhecer a si mesma, proporcionem-se prazer no mais íntimo dos íntimos momentos somente seus. Abracem-se, envolvam-se em seus braços, nos braços de outrem, que esse outrem seja um homem ou uma mulher. Sintam o mais profundo desejo de atingirem a completude sinestésica do seu próprio corpo num toque. Sejam donas de si, do próprio corpo, de suas vidas sem a mediação ou consentimento do outro.

Sejam felizes.

 

ENEM e o racismo perverso da educação brasileira

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ENEM 2014

CADERNO DE PROVA AZUL

QUESTÃO 21___________________________________________________________

Estatuto da Frente Negra Brasileira (FNB)

Art. 1º Fica fundada nesta cidade de São Paulo, para se irradiar por todo o Brasil, a Frente Negra Brasileira, união política e social da Gente Negra Nacional, para a afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na Comunhão Brasileira.

Diário Oficial do Estado de São Paulo, 4 nov. 1931.

 

Quando foi fechada pela ditadura do Estado Novo, em 1937, a FNB caracterizava-se como uma organização

  1. Política, engajada na luta por direitos sociais para a população negra no Brasil.
  2. Beneficente, dedicada ao auxílio dos negros pobres brasileiros depois da abolição.
  3. Paramilitar, voltada para o alistamento de negros na luta contra as oligarquias regionais.
  4. Democrático-liberal, envolvida na Revolução Constitucionalista conduzida a partir de São Paulo.
  5. Internacionalista, ligada à exaltação da identidade das populações africanas em situação de diáspora.

 

Hoje pela manhã, ao acordar, soube que a prova do ENEM deste ano trouxe uma questão que abordava a Frente Negra Brasileira (FNB). Tive imediato arrepio, por ter inicialmente pensado que as coisas estão de fato mudando a nosso favor a ponto de a FNB estar presente na prova. Entretanto, logo após veio uma tremenda sensação de fúria contra a instituição organizadora da prova, o INEP. Foi um misto de sensações que foi do êxtase de alegria à revolta destemida por conta da sacanagem que o INEP fez ao por na prova uma questão com esse teor.

Poderia dizer que, no auge das boas intenções, o órgão tendenciosamente está cuidando do legado deixado pela Frente no momento em que sua história é contada e abordada numa questão de prova dessa magnitude. Afinal de contas, a 11.645/08 (veja aqui) está aí pra quem quiser apreciar, e falar sobre a FNB nada mais é do que tornar fidedigna a abordagem sobre a temática que trata da cultura afrobrasileira. Sim, muito válido.

Mas a questão não é essa. Explico: a Lei 10.639/03 fora implantada em 09 de janeiro de 2003, há exatos 11 anos e 10 meses. Cinco anos após sua promulgação, ela foi aperfeiçoada e transformada na 11.645/08 para englobar a temática sobre cultura indígena na educação brasileira. Ponto.

A lei foi promulgada, aperfeiçoada cinco anos depois, mas o mesmo Estado que a elaborou, aprovou e sancionou não se preocupou em criar mecanismos para exigir o cumprimento e a aplicabilidade da referida lei. Não foram gerados instrumentos de controle para que se fosse cobrada a aplicação da lei nos espaços educativos de todo o país. Os mecanismos existentes ainda são ineficientes quando se trata do assunto. Ainda que a produção acadêmica e de materiais educativos tenha tido um crescimento vertiginoso em referência ao período anterior à lei, isso não significa um avanço no campo de ações implementadas, de modo a contemplar os estudantes da educação básica com o acesso a tal.

E quando falo de sua aplicabilidade legal, não me remeto aos eventos promovidos no mês de novembro nas escolas, que correspondem ao Novembro Negro, que doravante se prestam a compor fantoche das secretarias estaduais e municipais de educação no país, pois esta não é uma política compensatória, e sim educacional, como todas as outras que constam na LDBEN/96. E como positivamente estamos avançando na garantia de cotas, penso que o mês de novembro não seja mais uma cota, no qual só fale de preto nesse período por conta do sentido simbólico que lhe fora atribuído, muito menos pelas comemorações que lhe são feitas. Não deixo aqui nenhum ar de pretenso sarcasmo ou tom pejorativo, por não caber, e pelo compromisso que tenho com a política.

Tão logo, devo enfatizar que ainda que tenha sido promulgada uma lei que garanta que seja inserido no sistema educacional brasileiro todo o legado histórico e cultural da população afrobrasileira e indígena, na prática isso não chega a ser notório. E não sou eu quem digo.

No ano passado, quando se completaram dez anos de implantação da Lei 10.639/03, alguns especialistas se debruçaram na análise do que fora feito até então sobre a lei. Uma espécie de recorte que tratasse do que vinha sendo feito até então. E o cenário não foi nada animador. O que não era nenhuma novidade para quem vive na prática a experiência da grande recusa por parte das instituições e docentes em aplicar a lei, lecionar o conhecimento proposto, bem como cuidar de garantir a diversidade no ensino básico do país, e desfazer o eurocentrismo propedêutico presente nos livros didáticos. Desvelar o racismo presente no sistema de educação nacional. Pois como disse o antropólogo, professor emérito da Universidade de São Paulo e pesquisador-visitante sênior da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, Kabengele Munanga, a educação colabora para a perpetuação do racismo (veja aqui).

E para ratificar a afirmação acima trago o texto de Dennis de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC), membro do Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (NEINB), e colunista da Revista Fórum. O acadêmico traça com maestria um balanço sobre a Lei 10.639/03, tudo que não foi alcançado após sua promulgação.

Diante do exposto, julgo mais que incoerente a atitude do INEP de lançar uma questão num exame nacional sobre um assunto que não é tratado nas escolas. Nem na melhor das hipóteses ou intenções – com a óbvia exceção dos cursinhos pré-vestibulares populares, que, como diz Oliveira no artigo acima citado, cumprem um papel importante e louvável na aplicação da lei, mas não atacam o cerne do problema uma vez que se trata de ações marcadas pelo voluntarismo. Enquanto o Ministério da Educação não assumir a sua responsabilidade no desmantelamento do racismo institucional na estruturação das políticas educacionais brasileiras, a aplicação da lei pouco avançará.

O que os órgãos federais de educação têm feito não passa de um boicote afrontoso à educação, em especial a pública, do país. Pois o descaso que é dispensado à aplicação da lei, bem como os instrumentos avaliativos, não exercem seu papel executivo.

Ou seja, vejam como funciona; uma lei é promulgada para garantir o ensino de História da África, cultura africana e afrobrasileira no currículo da educação básica, que logo após é modificada para contemplar a temática indígena, de 10.639/03 passa a ser 11.645/08. O caput dessa lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Não são criados marcos regulatórios que cobrem sua execução, toda prática parte de um ato voluntário e individual (mais adiante falarei da minha trajetória nesse sentido) de um e apenas um indivíduo simpático aos ditos da lei, que se propõe a um esforço próprio, hercúleo e exaustivo de pô-la em prática no cotidiano escolar. E ainda assim, os órgãos tratam de cobrar em exames de esfera nacional algo que promulga e não se aplica.

Verifica-se o que disse Jane Elliott no documentário Olhos Azuis: o racismo impede que um determinado grupo de pessoas tenha acesso a determinados conhecimentos, e depois essas pessoas são obrigadas a responder uma questão sobre algo que foi impedida de aprender. É por isso que o já citado professor Kabengele Munanga disse que o nosso racismo é um crime perfeito.

Tem-se posto aqui o objetivo central de todo processo seletivo: a exclusão. Quando a questão foi lançada na prova o objetivo não foi trazer à tona o marco legal da 10.639/03, e sim subnotificar o ato falho que é a educação brasileira. A concepção do sistema educacional no Brasil parte de um pressuposto de que este se sustenta em ações individuais e estanques, e isso só se perpetua.

É peremptório o modo como o arcabouço educacional brasileiro se sustenta, pois trata de forma excludente o alvo das metas que propõe: o corpo discente. A estrutura organizacional toda é concebida de modo a minar a educação do país.

É possível verificar a gênese do epistemicídio educacional brasileiro com relação à temática racial já no processo de formação docente. Os currículos dos cursos de licenciatura e o de pedagogia não estão restritos à obrigatoriedade do ensino da Lei 11.645/08. Deste modo, não há um caráter obrigatório de os conteúdos sobre ensino de História da África e cultura afrobrasileira atingirem esse nível de ensino. E já que não há obrigatoriedade, a deficiência na formação de professores se desdobra mais adiante, na educação básica, o campo de atuação desses profissionais. Sem acesso ao ensino sobre cultura afrobrasileira e africana, o desconhecimento diante ao que é cobrado nos exames é mais que natural. Perceberam a sacanagem na prova?

A lei 10.639/03 atinge meramente o ensino público, já sucateado, e por alguns simpáticos e engajados com a luta antirracista no país. Os chamados “militantes sem causa”, já que não existe racismo no Brasil.

A esfera privada ignora solenemente o marco legal da LDBEN/96, que versa sobre. No ensino superior, seja este público ou privado, como dito anteriormente, isso não se faz obrigatório. Como compensação, núcleos de pesquisa e cultura afrobrasileira e da diáspora formado por aqueles mesmo simpáticos da luta antirracista organizam laboriosamente formações em nível de extensão para suprir o desfalque dado na formação de profissionais docentes.

Mais uma vez e sempre, a lei tem se garantido da intencionalidade de poucos que asseguram de modo isolado suas ações.

 

  *          *          *

 

Ao longo do texto comentei sobre as ações individuais de implementação da Lei 10.639/03 e a dificuldade de executar a lei nos espaços escolares. Pois bem, como já disse em alguns textos que publiquei aqui, tenho formação em Pedagogia, pela Universidade Federal da Bahia. Ao longo da minha graduação, senti a necessidade me aproximar das discussões sobre o ensino de História da África e cultura afrobrasileira.

Tive uma formação esvaziada nesse sentido, pois o currículo do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UFBA não contempla nenhum componente curricular com temáticas dessa seara. A matriz curricular do curso não é só deficiente como decisiva para o não debate desses assuntos na sua plenitude acadêmica, e isso se vê (aqui), no quadro curricular do curso. Tão logo, como desenvolvi um interesse pessoal e profissional pelo tema, resolvi sair em busca de algo que pudesse agregar à minha formação docente.

No decorrer da formação em Pedagogia, tive de conciliar a formação pedagógica eurocêntrica que preza por Piaget, Vygotsky, Wallon, Skinner, dentre outros – sem nenhum demérito ao trabalho destes – com a formação voltada para o ensino da cultura africana e afrobrasileira. Para tanto, tive de me aproximar de autores e autoras como Elikia M’Bokolo, Kwame Anthony Appiah, Stuart Hall, Ana Maria Gonçalves, Eliane Cavalleiro, Consuelo Dores Silva, Ana Célia da Silva, Marcus Vinícius Fonseca, Henrique Cunha Jr. e João José Reis, dentre outras. Fui buscar este último nos núcleos – aqueles pensados e organizados por militantes da luta antirracista – de algumas universidades públicas brasileiras.

O labor em unir duas formações, quando na verdade eu deveria ter ambas acopladas numa só, foi significativo para a proposta que dei à minha formação como profissional docente. Mas devo ressaltar que isso não deve, ou pelo menos não deveria, ser uma ação individual e exclusivamente minha. Desde quando há uma base legal para isso, a garantia ao acesso torna-se primordial.

Tive a ajuda de profissionais docentes que encampam a luta antirracista, militantes do Movimento Negro, e acadêmicos que resistem na luta e prezam pela garantia do ensino da 10.

O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), o Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira da Universidade Federal Fluminense (PENESB-UFF) e o Programa de pesquisa e formação em relações raciais, cultura e identidade negra na Bahia – Brasil (A Cor da Bahia) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da UFBA (foi para todos esses lugares que tive de me deslocar, tanto física como ciberneticamente, já que a Faculdade de Educação não deu conta dessa demanda) colaboraram no meu processo formativo. Nessas instituições realizei algumas formações em nível de extensão para entender as demandas que se sucedem com a Lei 11.645/08.

Digerir os conteúdos foi algo surreal a quem não tinha a menor aproximação com o tema, absolutamente nenhuma referência de como pensar sobre essas coisas e jamais tinha visto nada sobre durante toda a vida escolar. Entender a cartografia do continente africano foi tão sofrível quanto compreender os meandros do raciocínio simbólico de Foucault e Arendt.  E a título de ilustração relembro uma atividade de um curso que realizava pela UDESC, na qual tinha de entender a cartografia do continente africano e situar-me geograficamente na África Ocidental do Popó Grande, Popó Pequeno, Fernando Pó, Agudá, Porto Novo e tantos outros nomes estranhos pra mim. Minha capacidade de abstração para digerir essa gama de informações havia desaparecido pelos instantes que me consumiam. Entender de cartografia, compreender a leitura, e visualizar no Google Maps tudo que o texto trazia era algo que eu não tinha o menor domínio. Eu olhava, olhava, olhava e não conseguia entender nada daquilo.

Criar aproximação não foi tarefa das mais fáceis, mas era isso que pretendia e estava destinada, já que prezava por uma educação diferenciada dos moldes eurocêntricos a que estive subjugada.

Desfazer-se das amarras conceituais que a Pedagogia me moldava provocava tamanho estranhamento, inclusive, aos demais profissionais de licenciatura, que não entendiam o porquê d’eu relacionar esses estudos à minha área. Era como se eu estivesse adentrando um espaço reservado somente aos profissionais de História, Antropologia, Filosofia.

Prossegui nas formações, concluí o curso de Pedagogia, com a certeza iminente de que ainda terei de traçar um longo caminho caso queira dar continuidade ao que comecei lá no início. E para isso, realizo uma especialização na área de educação e relações raciais. Ou seja, estou dando prosseguimento ao que me propus.

Mas reitero que essa não deve ser uma tarefa individual. Pois o interesse, o cuidado com a formação, e o zelo pelo serviço que se presta deve emanar ainda no processo formativo dos profissionais de educação, para que posteriormente seja ofertado e cobrado dos discentes.

Eu certamente não teria dificuldade alguma em responder a questão do ENEM sobre a FN, pois me propus ao desafio de realizar um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no qual inclinei uma parte de um capítulo a falar sobre o trabalho que a Frente desenvolveu no cenário sociopolítico e educacional. Tão logo, não me causaria estranheza alguma responder a assertiva. Mas para realizar tal façanha, recolhi nas formações que realizei ao longo do caminho conteúdo necessário à compreensão do assunto. Me aproximei de acadêmicos que entendiam do assunto. Além disso, não estamos falando de mim, uma pessoa que já tem uma graduação concluída e fez um TCC sobre a FN e outras instituições. Estamos falando de estudantes que acabaram de sair, e que, em alguns casos, ainda estão, no ensino médio. Essas informações também devem estar acessíveis a quem está nessa fase dos estudos.

Aqui está mais uma mostra de um ato voluntário e individual que abordei aqui. Mas isso não se estende ao que os organizadores do exame fizeram quando da proposição da questão. Para além da ação de cada indivíduo, a aplicação da lei deve ser cobrada com mostras de resultados pela sua execução. Caso contrário, o resumo da ópera será sempre esta: cada um no seu quadrado externando o mar de ações e conteúdos programáticos numa luta solitária e extenuante que é a educação no Brasil.

Como disse o advogado e professor de Direito Samuel Vida, quando o assunto é luta política, a melhor forma de garantir que nada será feito é a aprovação de uma lei, pois dá a falsa sensação de vitória.

Meritocracia ou mentirocracia?

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Minha mãe e meu pai sempre cuidaram para que eu tivesse acesso à educação. Eu estudei em escola privada até a antiga 5ª série (atual 6º ano). Depois, ingressei no Colégio da Policia Militar do Estado da Bahia. E só a título de curiosidade, escolas militares, federais e de ensino técnico/tecnológico estão entre as melhores na qualidade de ensino público do país. Para ingressar no CPM, no ano de 1995, tive de fazer um teste de admissão em 1994. Ou seja, a escola selecionava seu público já na porta de entrada, dizendo quem podia ou não adentrar. Eu era a única da rua a estudar numa escola desse porte. Saí de lá em 2001, quando concluí o Ensino Médio.

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Passado um tempo, eu me esforcei para entrar na faculdade. Fiz cursinho pré-vestibular em 2008, e, em 2009, ingressei no curso de Pedagogia da Universidade Federal da Bahia. De cara, na primeira tentativa. Saí de lá em fevereiro deste ano, 2014, e já ingressei em outra universidade pública federal (UFF – Universidade Federal Fluminense). Tive mais uma vez a oportunidade de estudar na melhor universidade pública do meu estado, ao tempo que alguns poucos amigos estavam em faculdades privadas se esfolando para pagar a mensalidade e vivendo do subemprego por garantia.

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Sou servidora pública pelo município de Salvador desde 2007. No fim do mês, o meu tá na conta. Faça chuva ou faça sol. Não preciso ficar me tremendo todo fim de temporada à espera de um corte de pessoal, para que eu volte a ficar de pires na mão sobrevivendo do seguro-desemprego assim como muitos dos meus amigos e conhecidos vivem hoje.

E apesar de tudo isso, eu ainda penso que o resto do mundo tem que se esforçar para ter acesso a uma educação pública de qualidade, igual a que eu tive, estudando em escola e universidade públicas de excelência. Caso o contrário não passarão de uma corja de preguiçosos que ficam à espreita de mixaria de governo, quando na verdade deveriam ir à luta e batalhar para ter o seu.

A igualdade de oportunidades nesse país meritocrático ainda se organiza num processo moroso, e que demanda uma série de políticas que visam minimizar os efeitos das assimetrias sociorraciais escamoteadas no tecido da nossa sociedade.

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É um ultraje pensar que minha vizinha, meu primo, o amigo de meu irmão, o coleguinha do prédio não têm acesso a uma educação pública de qualidade que segue da educação básica ao ensino superior por preguiça ou descaso. Eles bem que poderiam estudar numa escola boa, não o fazem porque não querem.

É um acinte depositar toda credibilidade nas esferas de poder que minoram os efeitos catastróficos da miséria em que vivemos, e nos convence que somos fracassadas.

Ser contra as políticas sociais que dão conta de nos manter longe dos extremos da pobreza é pensar que o privilégio que lhe contempla é só seu e de mais ninguém, e alguns simplesmente não os têm por não merecê-lo.

Eu entendo que educação de qualidade deveria ser para todas. Deveriam existir universidades públicas que pudessem abrigar um contingente volumoso que vive à margem de tudo: saúde, educação, moradia, emprego, lazer e tantas outras coisas.

Mas não é assim que funciona. E por não ser assim que eu não devo pensar que o que é meu é porque conquistei com muito labor, e o resto do mundo que se f…….

Afinal de contas, não basta querer ter algo. É preciso ter condições para buscar o que quer. Não dá para pensar em virar astronauta sem saber física. Não dá para pensar em virar atleta de alto rendimento sem ter comida na mesa, material de qualidade para treinar e patrocínio para viajar e dedicar-se exclusivamente à prática esportiva. Não dá para pensar em virar ministra do Supremo Tribunal Federal sem ter sido ao menos alfabetizada.

Devo reconhecer que, no quesito educação, fui privilegiada. Mas é pouco. Eu quero ver muitas de mim ocupando as universidades públicas, e preterindo esses lixões maquiados de faculdades privadas que só reproduzem massa de manobra para o subemprego.

Quero ver gente minha na UFBA, UNEB, UFOB, UFRB, UESB, UEFS e tantas outras. Quero ocupar os espaços de poder que me são negados a todo o tempo, porque simplesmente “eu não me esforço”.

Quero pensar na possibilidade viável de ter mais médicos, advogados, fisioterapeutas, engenheiras, arquitetas, todos oriundos das classes baixas deste país. A faxineira de lá de casa deixou de lavar minha privada porque quis entrar na faculdade. O jardineiro da casa de praia resolveu estudar para ser doutor.

Mais igualdade de oportunidade, e menos massacre social. É isso que queremos.

Eu fui apenas uma a furar o cerco. Quero poder arrombar a porta para o povo entrar e juntos comemorar. Ou como disse Léo Santana, “de onde eu venho, tem mais”.

 

A questão racial e o sistema prisional brasileiro (breve histórico sobre a marginalização do negro)

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Por: Raphael Lisboa de Souza*

O sistema carcerário brasileiro tem cor. Essa é uma consideração, que infelizmente não pode ser vista como absurda, já que ao avaliar as condições humanas, em que a população negra foi submetida, será fácil perceber que, essa se encontra em grande vulnerabilidade social. Durante o pós-escravidão, a população negra brasileira, foi jogada a esmo, ficando a margem da sociedade, que via o ideal de “perfeição”, algo similar ao perfil europeu. Dessa forma, não houve nem um espaço para o negro, e nem para o indígena, no que tange a “evolução” da sociedade brasileira.

Durante o final do século 19 e começo do século 20, o Brasil passa por uma grande transformação em sua estrutura social e urbana. Com advento da segunda revolução industrial, e após os conhecimentos da evolução humana, proposta por Darwin, muitos dos valores, que antes eram considerados como normais- a escravidão que antes era vista como algo normal, passa a ser vista com maus olhos- foram caindo por terra. As lutas abolicionistas, que bebiam muito dos ideais positivistas, e evolucionistas da época, não tinham apenas o intuito de livrar o negro da senzala. Escritores abolicionistas como Joaquim Manoel de Macedo, afirmava que o contato do homem branco, com o homem negro, era algo extremamente danoso para o homem branco. As ideias que estavam sendo amplamente divulgadas nessa época, traziam em seu bojo um ideário, da existência de uma “raça superior”. Dessa forma, todas as raças consideradas não brancas, eram tidas como “menos evoluídas”.

Dentro dessa conjuntura os negros foram excluídos e tiveram suas imagens marginalizadas. Muitos por causa do descaso do Estado, e do restante da sociedade, sem poder gozar do status pleno de cidadão, terminaram por buscar alternativa em praticas ilícita. Nina Rodrigues e Thobias Barreto, dois dos principais divulgadores das ideias eugênicas, afirmavam que os negros se encontravam em situações degradantes, por causa da sua inferioridade racial. Recorriam a praticas da antropometria- mediam partes dos corpos como nariz, córtex cerebral, dizendo que pessoas que supostamente, tivessem traços fenotípicos de um negro, seriam marginais em potencial – estudos como esse, foram um combustível para o desenvolvimento da antropologia criminal. Um caso que pode servir como “ilustração” desses perfis de criminosos, foi o recente caso do ator que ficou preso 16 dias, sem ter ao menos uma prova cabal contra ele. A justificativa para tal prisão foi que ele parecia com um suposto assaltante. Não é preciso dizer que esse ator, era negro, e mesmo ele estando “bem vestido”, não escapou do estigma de ser um suposto bandido.

Seguindo essa lógica, o homem negro ficou mais longe da sociedade, e esteve mais perto do cárcere. Cabe dizer que de escravizado, ele passou a ser um “criminoso” em potencial, tendo seus hábitos, religiosidade, e imagem, passiveis de criminalização. Muitos foram presos apenas por estarem cultuando o candomblé, ou jogando capoeira (as casas de candomblé para funcionar, deveriam ser registradas na delegacia de jogos e costumes, e a capoeira foi proibida até a década de 30). Essa é uma forma evidente, que mostra o racismo estampado na historia da nossa sociedade. Racismo esse, que gerou sequelas existentes ainda hoje em nosso seio social.

Um fato histórico não fica enterrado no passado, longe do nosso presente. E sabendo disso, pode-se perceber os péssimos frutos colhidos por esse sistema excludente, que foi instaurado no Brasil durante anos. Atualmente, mais que da metade do numero de presos, são pertencentes à raça negra. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (2013) cerca de 54% dos detentos são pretos e pardos.Há quem queira recorrer para os estudos da eugenia,e afirmar que estes presos,são a prova viva dos experimentos de Nina Rodrigues.Muitos preferem ignorar o fato,que muitos desses que estão presos,são na verdade vitimas do racismo institucional.O racismo institucional,funciona basicamente,com ampla e total deficiência do sistema publico -falhas na educação,falta de emprego,lazer,aumentam a proximidade com a criminalidade.Segundo uma pesquisa,feita pelo IBGE (2010) aponta que,a taxa de alfabetização entre negros e brancos é algo completamente desigual.Os dados mostram que pretos e pardos apresentaram taxa de analfabetismo de 14,4% e 13% respectivamente,enquanto brancos apresentaram 5,9%.Com essa deficiência,só restam as vagas nos sub empregos,ou a criminalidade.

O sistema carcerário, não é apenas uma forma de corrigir um sujeito, por um ato infracional cometido. Ele na verdade, é uma forma de desumanização e exclusão da humanidade, da pessoa que venha cometer um delito. Para Foucault (1975) a prisão servia para manter os corpos “dóceis”, obedecendo as lógicas do meio social. Porém, as prisões se mostram como o local onde a redenção, e a inclusão do marginalizado, se tornam verdadeiros mitos, e o numero de reincidentes, se transformam em regras concretas. Essa precariedade do sistema prisional,mesclado com o racismo velado,faz com que muitos desses “marginais”, permaneçam na mesma posição social.

Esses agravantes devem ser resolvidos com seriedade, e devem ser enxergados como problemas urgentes. Não se pode mais ignorar o fato do racismo institucional, e ter a ignobilidade de não perceber os efeitos disso, dentro da nossa sociedade. Cabe tanto ao poder público, quanto ao restante da sociedade brasileira, um verdadeiro combate ao racismo, e uma verdadeira garantia de equidade e de humanização das minorias que se encontram em vulnerabilidade social. Só dessa maneira, será possível retirar a população negra da sombra da criminalidade.

 

* Licenciando em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia.

Ariano Vilar Suassuna, este sim vai fazer falta!

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(*16 de junho de 1927 – † 23 de julho de 2014)

 

A cultura nacional hoje perdeu um dramaturgo, romancista, ensaísta e poeta, grande cânone literário brasileiro. Ariano Suassuna foi uma figura célebre que exerceu com seriedade seu papel na arte de escrever e criar personagens, histórias e outras aventuras literárias. Natural de João Pessoa, radicado em Recife desde 1942, nordestino nato, ele conseguiu transpor as barreiras impostas ao povo da região Nordeste do país com seus escritos.

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Com respeito, desenvoltura e soberania levou sua arte aos quatro cantos do Brasil com a sobriedade que lhe era peculiar. Defendeu a sua obra e propagou seu rico conhecimento até os últimos instantes. E é com respeito que o reverencio.

Na última quarta-feira, há exatamente uma semana do seu falecimento, Suassuna esteve no Teatro Castro Alves, em Salvador, para ministrar uma aula-palestra. Hoje, com a notícia de sua morte, lamentei imensamente o fato de não ter estado presente na única e última oportunidade de sorver um pouco da sua sabedoria.

Membro da Academia Brasileira de Letras desde 1989, ocupante da cadeira de número 32, este célebre imortal escreveu obras como Auto de João da Cruz, Os homens de barro, Uma mulher vestida de Sol, Farsa da boa preguiça, e tantas outras, sendo a mais famosa adaptada para a TV no ano de 1999, O Auto da Compadecida. As interpretações de João Grilo e Chicó, feitas por Matheus Nachtergaele e Selton Mello, são memoráveis.

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Esta última trouxe um pouco do cotidiano do povo do sertão e quebrou rigores estéticos presentes na religiosidade cristã. Suassuna ousou inovar quando nos agraciou com o Jesus Cristo negro, estrelado por Mauricio Gonçalves. O ultraje do escritor provocou espanto, riso e muito incômodo. Mas quem disse que Jesus Cristo não pode ser negro? Ariano Suassuna mostrou que pode – até porque na região em que dizem que Jesus nasceu, ele jamais poderia ser branco, loiro e de olhos azul-piscina.

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É com esta nota publicada na Folha de São Paulo, em 07 de março de 2000, que rendo loas ao imortal romancista que ousou o novo, e desfez a lógica do padrão estético eurocêntrico presente na cultura brasileira.

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“Racismo e capitalismo

ARIANO SUASSUNA

Foi em 1955 que escrevi o “Auto da Compadecida”. Naquela época, com exceção do admirável “Teatro Experimental do Negro” – criado por Abdias do Nascimento -, os movimentos negros não se tinham, ainda, organizado no Brasil. Brasileiro branco e privilegiado que sou, os poucos acertos que, naquele tempo, me ocorriam ao refletir sobre o racismo originavam-se apenas de uma apaixonada busca da verdade e da justiça – coisa que, graças a Deus, desde muito moço nunca me faltou (às vezes acompanhada por uma indignação nem sempre medida e justa).

Foi a partir da década de 80 que, convivendo com Adelaide Lima, Josafá Mota e outros participantes do Movimento Negro Unificado, passei a ter uma visão mais clara sobre o problema dos negros, no Brasil e no resto do mundo. Passei a frequentar o MNU; e, no curso de uma de suas reuniões, tive oportunidade de ouvir uma verdadeira aula, pronunciada por Joel Rufino dos Santos, que explicou por que a sociedade brasileira encara com tanta naturalidade a tortura (desde, é claro, que praticada contra os pobres, os negros e os desvalidos de qualquer natureza): é que, durante quatro dos cinco séculos do Brasil “branco”, a tortura era não só tolerada ou permitida, mas legal e prescrita por documentos oficiais. Chegava-se a discriminar, cuidadosamente, caso a caso, o número de chibatadas e castigos piores que deveriam ser aplicados aos escravos, de acordo com a natureza e a gravidade dos “crimes” que tivessem cometido. “Assim formada” – dizia Joel Rufino dos Santos naquela aula -, “não admira que a sociedade brasileira branca ache que é natural prender e torturar os brasileiros pobres e negros por ela considerados como marginais.”

Noutra reunião do MNU, uma moça, Inaldete Pinheiro de Andrade, perguntou-me se, na época em que escrevera o “Auto da Compadecida”, eu já era devidamente esclarecido sobre o problema negro. Respondi-lhe que não. E ela retrucou que, mesmo assim, o aparecimento, no palco, do meu Cristo negro fora uma das grandes emoções de sua vida.

Agradecendo suas generosas palavras, contei como chegara a ele. Durante os dias em que escrevia a peça estava acontecendo, nos Estados Unidos, uma campanha destinada a impor legalmente a presença de crianças negras nas escolas brancas. Em revide, os brancos racistas organizavam manifestações contra a integração; e eu vi, na revista “Life”, a fotografia de um desses comícios: na frente do grupo de “brancos, anglo-saxões e protestantes”, uma mulher (aliás, e não por acaso, horrorosamente feia) exibia um cartaz no qual se lia: “Ao criar raças diferentes, Deus foi o primeiro segregacionista”.

Foi nesse momento que, movido por uma daquelas indignações a que me referi a princípio, resolvi apresentar como um negro a figura de “Manuel”, isto é, a imagem popular do Cristo que iria aparecer em minha peça. E concluo pedindo que se reflita um pouco para ver como são semelhantes, por um lado, a cabeça e o coração da mulher do cartaz e, por outro, a cabeça e o coração daqueles que afirmam que Deus é capitalista porque foi ele quem criou as desigualdades e injustiças do regime que tem no lucro e na produção a qualquer custo seu objetivo fundamental.”

(Clique aqui para ler o original da coluna.)

Os que dantes se foram estiveram só de passagem. Ariano Vilar Suassuna, mas popularmente conhecido como Ariano Suassuna, abre passagem para todas aquelas que admiram seu trabalho carregar consigo o conforto de ter tido uma pessoa do seu quilate entre nós, reles mortais.

 

P.S.: na caixa de comentários do texto que escrevi sobre João Ubaldo Ribeiro, um sujeito pediu para eu escrever um texto sobre Ariano Suassuna. Aqui está. Como disse o Capitão Nascimento, “missão dada é missão cumprida”.

Rubem Alves se foi. Mais um ou menos um?

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Parece que a bruxa está solta. Depois do imortal anticotista e escritor João Ubaldo Ribeiro, ontem foi a vez do escritor e educador Rubem Alves.

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Referência educacional no país, Rubem Alves, morre aos 80 anos deixando um imenso legado à educação no Brasil.

SQN para Rubem Alves.

Não consigo ficar consternada com a morte desse povo. Ele teve uma imensa contribuição para educação no Brasil. Teve, claro que sim. E isso eu não posso, nem devo negar. Ele contribuiu tanto, que não podia ter deixado sua passagem por esse plano em vão, e daí publicou isso aqui na Folha de São Paulo:

“RUBEM ALVES

“Crioulinha…” 02

As palavras são a carne do mundo; não podem ser substituídas por outras, ainda que mais verdadeiras

UMA DAS MEMÓRIAS felizes que tenho de minha infância me leva de volta à escola. Eu estava no terceiro ano primário. Era a aula de leitura. Não, não era aula em que líamos para a professora ouvir e corrigir. Ao contrário, era a professora que lia para nos deliciar. Foi assim que aprendi a amar os livros. Não aprendi com a gramática.

Dizem que os jovens não gostam de ler. Mas como poderiam amar a leitura se não houvesse alguém que lesse para eles? Aprende-se o prazer da leitura da mesma forma como se aprende o prazer da música: ouvindo. A leitura da professora era música para nós.

A professora lia e nós nos sentíamos magicamente transportados para um mundo maravilhoso, cheio de entidades encantadas. O silêncio era total. E era uma tristeza quando a professora fechava o livro. “O Saci”, “Viagem ao Céu”, “Caçadas de Pedrinho”, “Reinações de Narizinho”. Esses eram os nomes de algumas das músicas que ela interpretava. E o nome do compositor era Monteiro Lobato.

Mas agora as autoridades especializadas em descobrir as ideologias escondidas no vão das palavras descobriram que, por detrás das palavras inocentes, havia palavras que não podiam ser ditas. Monteiro Lobato ensina racismo. E apresentam como prova as coisas que ele dizia da negra Tia Anastácia…

A descoberta exigia providências. Era preciso proibir as palavras racistas. Monteiro Lobato não mais pode frequentar as escolas…

Assustei-me. Senti-me ameaçado. Fiquei com medo de que me descobrissem racista também. Tantas palavras proibidas eu já disse.

É preciso explicar. Naqueles tempos, tempos ainda com cheiro da escravidão, havia um costume… As famílias negras pobres com muitos filhos, sem recursos para sustentá-los, ofereciam às famílias abastadas, brancas, para serem criados e para trabalhar. Assim era a vida. Foi assim na minha casa. Veio morar conosco uma meninota de uns dez anos, a Astolfina, apelidada de Tofa. Escrevi sobre ela no meu livro de memórias “O Velho que Acordou Menino”. Cuidou de mim, dos meus irmãos, e morou conosco até se casar. Acontece que, ao contar sobre ela, eu usei uma palavra que fazia parte daquele mundo: “crioulinha”. Era assim que se falava porque essa era a palavra que fazia parte daquele mundo. Imaginem que, obediente à “linguagem politicamente correta”, eu, hoje, tivesse escrito no meu livro “uma jovem de ascendência afro”… Não. Esse não era o mundo em que a Astolfina viveu.

As palavras são a carne do mundo. Não podem ser substituídas por outras, ainda que mais verdadeiras, ainda que sinônimas. É preciso dizê-las como foram ditas para que o mundo que foi fique vivo novamente. A história se faz com palavras que faziam parte da vida. Aí, então, se pode explicar, como nota de rodapé: “Era assim. Não é mais…”.

Estou com medo de que as ditas autoridades descubram que usei a palavra racista “crioulinha” para me referir àquilo que, hoje, seria “uma jovem de ascendência afro”.

Estou, assim, tomando minhas providências. Para que não coloquem meu livro no “Índex” vou apagar a palavra “crioulinha” do texto e, sempre que precisar me referir à Tofa, direi que ela era uma governanta suíça e ruiva, uniformizada de branco e touca, para evitar que fios de cabelo caíssem na comida… Assim, meu livro purificado do racismo poderá frequentar as escolas…” 03

 

(Clique aqui para ler o texto original)

Não comemoro a morte “dozoto” como dizem por aí. Até porque uma pessoa quando morre, ao contrário do que muito se especula, não está pagando seus débitos com o mundo pelas mazelas que cometeu. E segundo minha crença, quando alguém morre, o ser passa desse plano para outro para dar seguimento à sua vida, só que noutro plano.

No candomblé, apesar de não ser adepta da religião, diz que quando uma pessoa morre ela vai do Orum para o Aiê, que equivale à terra e céu, no cristianismo.

Rubem Alves foi um grande pensador contemporâneo que contribuiu no campo educacional de modo significativo. Sim, isso é fato. Mas apesar de tamanha colaboração, ele também execrou “minorias” frente a políticas sociais que prezam por restituições históricas.

Saliento que ele não foi o único, pois João Ubaldo Ribeiro, Monteiro Lobato, Ziraldo, Isaías Alves e Rubem Alves, cada um no seu tempo, inferiram e propagaram ideias que não se coadunavam aos propósitos de luta das políticas sociais que vem a muito custo ganhando espaço no cenário nacional, e que é fruto da atuação da militância negra no país. Tão logo, a morte dele só pediu passagem para mais um que se opunha às políticas de ações afirmativas, e menos um que vai fazer falta, a não ser para quem o aprecia e pelo legado que deixou na educação no Brasil.

Enfim, é isso.

 

 

João Ubaldo Ribeiro morreu. Já foi tarde.

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Morre João Ubaldo Ribeiro, escritor baiano, natural da Ilha de Itaparica, membro ocupante da cadeira de nº 34 da Academia Brasileira de Letras, autor de diversos livros, sendo os mais conhecidos, Viva o Povo Brasileiro e Sargento Getúlio.

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Devo reconhecer sua importância como escritor para nossa literatura, mas devo salientar também sua atuação constante nos últimos anos em prol da reserva de mercado para cidadãos não-negros no Brasil.

Se vocês não sabem, que se apropriem, pois é importante saber, principalmente para quem encampa a luta antirracista no Brasil, que João Ubaldo, assim como seu conterrâneo baiano, Caetano Veloso, foi um dos signatários do manifesto intitulado “Centro e treze cidadãos não racistas contra as leis raciais”, enviado ao STF em abril de 2008, mais conhecido como “Carta dos 113“.

João Ubaldo morreu, meu povo. Que pena. Afinal de contas, ele deixou um legado muito singular na literatura nacional. Mas confesso que já foi tarde, pois quem leu sua grande obra Viva o Povo Brasileiro sabe bem a simpatia do autor com as ideias propagadas lá na década de 1930 por Gilberto Freyre, com seu ideal de democracia racial. Isso sem falar que, politicamente, ele estava no lado oposto da luta que encampo. Pois eu, cotista, mulher preta e favelada, oriunda de universidade pública federal, por definição, não posso estar do mesmo lado de um sujeito que assinou um documento para tentar acabar com a reserva de vagas para estudantes pretas e pobres no ambiente acadêmico brasileiro.

Vai-se mais um escroque desse mundo. E caso vocês fiquem estupefatos com esse monte de “atrocidade” que digo aqui, tudo bem. Se não quiserem acreditar em mim, nenhum problema. Apenas tenham a curiosidade de ler o documento citado acima no qual João Ubaldo e demais safardanas iguais a ele assinaram e enviaram ao STF no ano de 2008.

Sei que já se passaram seis anos, e como bem dizem por aí, brasileiro tem memória curta. O povo não se lembra do que comeu ontem, quem dirá de quem te chibateou no século passado. Afinal, como foi dito por um personagem do filme Besouro, “é só receber um afago que o povo logo se esquece das chibatadas”.

Ah! Só mais uma coisinha, minha mãe costuma dizer a seguinte frase quando algum malfazejo morre: “ele morreu, na alma dele cago eu”.

Foi assim. Falta, pelo menos para mim, não vai fazer.

 

Vinte e três crianças terão as suas vidas salvas pela doação de um jogador alemão. E as outras, nós vamos deixar morrer à míngua?

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A notícia que badalou os jornais de hoje, 17 de julho, e agitou também as redes sociais: O jogador Mesut Özil, titular da Alemanha, doou cerca de 880 mil reais do seu patrimônio privado, grana faturada com a conquista do tetracampeonato na Copa do Mundo 2014 no Brasil, para salvar a vida de 23 crianças brasileiras doentes.

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Devo considerar que fora um ato de tamanha nobreza a doação feita pelo alemão às criancinhas pobres do Brasil. Mas uma coisa que também pude observar foi a pedestalização de muitos por aqui ao jogador, sem falar nos comentários do tipo: “Cadê os jogadores da seleção brasileira que não fizeram a mesma coisa? Grande Özil! Os alemães mostraram que também são campeões de humildade” e otras cositas más.

Mas devo dizer que:

1. Doar seu próprio patrimônio a crianças miseráveis que não tem do que viver, ou sequer saúde pública de qualidade, não faz ninguém melhor ou pior que outrem;

2. Dinheiro pessoal é de uso pessoal. Desculpem a redundância, mas o dinheiro que a gente ganha, só nós decidimos o que fazer com ele. Se quisermos comprar uma esquadra inteira de maconha, ou uma coleção que caiba no Maracanã de jatinhos para fazermos escalas RJ/Búzios, como nas novelas “manoelescas”, ou encher carros-tanques de água potável e comida para os subnutridos do Malawi, isso é unicamente decisão de quem doa. É um ato de vontade, no qual ninguém poder meter o bedelho. É muita babaquice fazer enquete social sobre o destino do pecúlio de cada um;

3. A doação do jogador só exibe o que nós já sabemos e hipocritamente sequer mencionamos: o descalabro da saúde pública no Brasil. Sim, porque se esse tal de Özil não doasse esse montante, essas 23 crianças morreriam antes mesmo de chegar à adolescência, assim como todas as outras que não receberam o benefício do compadecimento alheio e irão pro céu na próxima curtida que você der numa nota sobre essa bendita doação do Özil;

4. PQP!!! A imprensa brasileira deveria ter vergonha de divulgar uma notícia como essa. Quando, na verdade, o que está por trás da cortina é o câncer social da falta de saúde pública eficiente, em que muitas de nós morremos nas filas dos hospitais, mulheres dão à luz na rua por não encontrar vaga nas maternidades públicas, ou até mesmo muitos morrem na porta pedindo socorro;

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5. Precisou vir um europeu da casa da porra para ver a merda que é saúde pública no Brasil para se compadecer e doar essas migalhas de 880 mil reais. Sim, são migalhas. Essa grana, ele faturou só num campeonato jogando apenas sete partidas. Ele fatura muito mais que isso – em euro, o que é melhor – com o contrato que mantém com o Arsenal, e as campanhas publicitárias que abarca.

Ahhhhhhhh, mas que isso, Paula, você também, hein? Chata pacas.

Pode ser, mas cada um expressou sua opinião aqui nos comentários que exaltavam o jogador europeu, daí resolvi explanar alguns pontos dessa deficiência disfarçada de benemerência.

E ponto.

 

É possível produzir um filme infantil sem clichês machistas e sexistas? Malévola nos mostra que sim.

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Fui ao cinema esta semana a fim de ver a comédia Os Homens São de Marte… e É pra Lá que Eu Vou, mas como os ingressos da sessão a que pretendia assistir haviam se esgotado, acabei ficando sem opção. Foi quando resolvi aceitar a sugestão de uma espectadora na fila do cinema que falou maravilhas sobre o filme Malévola. Dizia ela que o filme era lindo, muito bom, super-recomendado e tales coisas. Resolvi acreditar e fui conferir.

 

Logo no início, me perguntei o que estava eu fazendo ali vendo um filme sobre fadas. Imaginei que havia caído numa cilada sem tamanho. Ninguém merece sair de casa para ver comédia e terminar vendo fadas.  E isso me atormentava, mas já que estava ali, o jeito era se conformar e ficar até o fim. Era o tipo: “tá no inferno, abraça o capeta”.

Mas a película me surpreendeu – positivamente, é claro. A mensagem embutida nos filmes de bela adormecida normalmente recorta a mocinha que dorme num sono profundo e só despertará com um beijo de amor verdadeiro a ser dado por um príncipe ou seu amado.

Nesse sentido, Malévola ganha pontos por trazer outro viés do beijo de amor verdadeiro.

De fato, há uma princesa que cai no sono da morte após furar a ponta do dedo indicador direito numa roca de fiar e só despertará com um beijo de amor verdadeiro. E este beijo é dado por um príncipe inicialmente, mas a bela não desperta quando é beijada.

O tão amoroso beijo que irá despertá-la é o dado por uma fada, aparentemente má, interpretada por Angelina Jolie, na personagem que dá nome ao filme. E que também é a fada madrinha que lançou o feitiço sobre a bela adormecida.

A trajetória do filme circula em meio à vingança de Malévola a Aurora, a bela adormecida, interpretada pela jovem Elle Fanning, filha do rei Phillip, interpretado pelo ator Brenton Thwaites. Seu então amigo de infância.

Quando criança Malévola vivia numa terra de fadas, enquanto Phillip era um curioso menino do mundo dos humanos que rondava sua terra. Mas Phillip cresceu no mundo dos humanos, e com ele a ambição tornou-se seu maior defeito.

Pois, foi vivendo numa corte que surgiu a possibilidade de ele se tornar rei do esplendoroso castelo e adquirir direitos e poderes pomposos. Mas para isso, ele teria de conquistar a terra das fadas para os humanos e acabar com sua anfitriã, Malévola.

A amizade que ambos tinham não permitiu que este a matasse e a trouxesse como prêmio, mas fez com que ele tirasse parte de seus poderes. Foi quando resolveu cortar suas asas, que eram preservadas pela fada desde criança.

Sem as asas, Malévola não só perdia parte dos seus poderes, mas toda a confiança depositada num humano que ela tinha como amigo. Furiosa, ela resolve se vingar lançando o tal feitiço a Aurora, filha do seu amigo traidor.

Para além do beijo de amor verdadeiro dado por Malévola em Aurora que fez com que esta despertasse do sono da morte, a película recorta também a ideia que se faz sobre as relações de amizade, e quebra clichês maniqueístas.

No filme o bem não vence o mal, ou vice-versa. O que há é uma fada que pensava ter um amigo, mas quando traída mostra toda sua fúria, fazendo-o percebê-lo que uma doce amizade quando enganada pode se transformar num furor irreparável.

A quebra de clichês que o filme traz é muito positiva, no sentido de desconstruir essa visão machista presente nos filmes infantis de que toda menina/mulher precisa de um grande amor para despertar ou viver.

É aquela ideia de que a mulher não possui desenvoltura suficiente que a faça viver feliz sem a presença de um homem. Na tradição fílmica, machismo e sexismo se correlacionam. Malévola consegue quebrar esse encanto sem precisar de um macho para isso.

Tem outro ponto relevante acerca do conceito maniqueísta de mundo em que o bem e o mal, o céu e o inferno, o belo e o feio se opõem. Na trama, há o bem e o mal numa só pessoa. Não há dissociação do que seja uma pessoa do bem, ou uma pessoa do mal. E isso advém da construção do ethos, que na filosofia fala sobre a construção do caráter do indivíduo.

Ou seja, mais que um filme, Malévola é uma nova roupagem dada às produções fílmicas voltadas para o público infantil. E tem sido positivo o recorte e as mensagens embutidas em suas tramas.

Devo considerar que este também não é uma perfeição do cinema que se lança nas telonas. Mas devo ressaltar a magnitude em não referendar o machismo e/ou sexismo em mais um veículo de informação ao público.

Descortinar clichês também desfaz essa nuance bíblica presente nos filmes que tanto se repete no nosso cotidiano. E isso tem de ser considerado.

As coisas estão mudando, meu povo. A passos muitíssimo lentos, a bem da verdade, mas estão mudando.

 

 

E se, ao invés de Luis Suárez, fosse Mario Balotelli?

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Desde 12 de junho último, não se fala em outra coisa que não seja futebol. Óbvio, afinal de contas é Copa do Mundo, e no Brasil, o que é pior, ora bolas. A nossa mídia vã não tem se ocupado de outro assunto que não as disputas futebolísticas, o vaivém das seleções participantes, o dia a dia das estrelas do campeonato, as performances dos jogadores em campo, e até o bumbum de um atleta caiu na graça midiática e virou notícia.

Mas o que poucos esperavam, ou ao menos, imaginavam é que houvesse quem se utilizasse de métodos escalafobéticos (é este o termo, pois julgo impossível inferir outro diante tal atitude) na tentativa de auferir uma partida.

Pois é, o jogador da seleção uruguaia, um tale chamado Luis Suárez, num súbito ataque de fúria e total desagravo morde seu adversário em campo, o jogador da seleção italiana Giorgio Chiellini, no confronto entre Uruguai e Itália, realizada na última terça-feira.

 

Como era de se esperar, o caso ganhou notoriedade mundial e virou notícia. Bingo! E o que mais causou espanto foi saber que o dito cujo é reincidente em grotesca e violenta atitude, e, inclusive já foi notificado e punido anteriormente duas vezes.

A pressão da mídia cobrou notadamente uma posição da entidade organizadora do evento, a FIFA, que por sua vez se manifestou perante a atitude do canib…, ops!, jogador punindo-o com o afastamento do campeonato, suspensão por quatro meses de qualquer atividade ou evento ligado ao futebol. Além disso, está vetada sua presença em estádios durante qualquer partida.

Mas, para além do caso escandaloso da mordida do Suárez, há também notificações de insultos racistas desferidos por este em campo a outros jogadores de futebol negros. Coisas do tipo: “te chutei porque você é negro”, dito ao jogador francês Patrice Evra, lateral-esquerdo do Manchester United em partida deste clube contra o Liverpool, atual clube de Suárez, válida pela Premier League, a divisão de elite do futebol inglês.

Ou seja, a ficha técnica dele é muito mais suja do que se imaginava. Além de ataques físicos, ele é dado a ataques verbais envolvidos em insultos de puro ódio racial.

Essa mesma mídia que notificou o caso e cobrou uma atitude por parte da FIFA, deu vazão a outras interpretações a atitude do Suárez.

Essa mídia mórbida trouxe especialistas para averiguar a atitude do mordaz jogador, com fins de amenizar através da psicanálise seu trauma em mordedura. E o que me espanta é ligar a TV e ver um profissional sério, em tese, prestando o desserviço de dizer que sua atitude não passa de um trauma de infância não superado. Ou pior, que seu comportamento remete a alguma mazela da sua tenra idade que não foi vencida.

Perdoem as palavras, mas aqui cabe um PUTA QUE PARIU!!! (em caixa alta e com três interjeições)

As agressões racistóides e as mordidas lançadas contra os adversários do Suárez são amenizadas com suspensões em jogos, pagamento de multa em algumas migalhas de libras esterlinas e quem sabe até um tratamento psiquiátrico para o bom rapaz. Quando na verdade caberia uma punição mais contundente que o banisse de uma vez por todas da carreira futebolística.

Imaginem só se o mesmo comportamento hostil fosse praticado pelo jogador da seleção italiana, colega do Chiellini, Mario Balotelli. Aposto que a mídia justiceira que cobrou uma punição ao cão feroz seria a mesma a dar uma punição ao Balotelli, que, como todos sabem, é italiano, nascido em Gana.

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Caso Balotelli fosse adepto do mesmo comportamento, na melhor das intenções, seria tachado de canibal. A lógica racista e repudiada do Suárez se converteria em enxovalhamento público e descarado pela grande mídia, sendo capaz de veicular que tal postura não passa de canibalismo ganense que não se adequou aos ares d’Itália.

Milhares de memes de “tribos africanas” assando pessoas dentro de um caldeirão já teriam sido espalhadas no Facebook para associar o ato a supostas “ligações ancestrais” com pessoas habituadas a comer carne humana. A imagem de Balotelli já teria sido achincalhada publicamente de todas as formas, e eu duvido que apareceria um psicanalista para dizer que isso pode ter alguma ligação com algum trauma de infância não superado.

Eu no final das contas, ele é africano mesmo, o que se esperar dessa gente? (sic!)

E tanto incômodo advém do fato de Balotelli ser (…) “qualquer coisa, menos submisso. Indisciplinado, encrenqueiro, vaidoso. Um Simonal do calcio. Noel Gallagher, do Oasis, seu fã, o chamou de ‘rock-star moderno’. Anda de Ferrari, frequenta a noite, é mulherengo (teria brigado com a namorada Fanny Neguesha na véspera do confronto com o Uruguai). Ele só é tolerado porque faz gols. Quando não faz, quem precisa dele?

Engraçado ou estranho é ser tudo isso, e ainda por cima ser preto. PQP!!! Mas e se fosse o contrário? Se ele fosse branco, ao invés de “indisciplinado, encrenqueiro, vaidoso”, ele na verdade seria mais um de personalidade forte e, sobretudo autêntico. Pois estes são adjetivos atribuídos muito mais pelo tom de pele do que pelo caráter que alguém como Balotelli possa ter.

 

Vamos brincar de índio

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Acabo de finalizar uma formação sobre culturas e histórias indígenas no Brasil, oferecida pelo Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina extremamente relevante para os docentes simpáticos e praticantes da Lei Federal 11.645/08, bem como para quem não sabe nada de nada, mas tem vontade de começar a inteirar-se do assunto.

Ao longo da formação, estive envolvida com temáticas dantes totalmente desconhecidas por mim. E há um tempo tenho me aproximado de conteúdos e materiais que versam sobre a lei, mas devo confessar minha inclinação para as discussões sobre a cultura afrobrasileira, ainda que a lei trate da história e cultura afrobrasileira e indígena.

Precisamos conhecer a história dos povos indígenas brasileiros, pois o legado civilizatório deixado por eles é tão importante e merecedor de crédito e respeito quanto o afrobrasileiro. Além disso, a escravização e o genocídio perpetrado contra estes povos foram tão perversos e atrozes quanto os praticados contra a população trazida compulsoriamente do continente africano para cá.

Mas o que pretendo abordar aqui vai além do caráter didático que uma formação para profissionais docentes pode dar. Venho notificar que vemos todos os dias na TV disputas por posse de terra que envolvem inclusive confrontos armados entre indígenas e milícias a mando do agronegócio brasileiro. E o que mais provoca nosso espanto é ver como esses selvagens afrontam as pessoas de bem numa luta desnecessária e indevida para o requerimento de terras que não lhes pertence. Não sei para que índio quer terra! São preguiçosos, um rebanho de vagabundos que não gostam de trabalhar. A terra deve ficar para quem trabalha e produz nesse país. (sic!)

Essa é a mensagem que a mídia distorce e exibe todos os dias nos seus noticiários, nos fazendo acreditar que a luta por terras pela comunidade indígena no Brasil é uma luta entre “selvagens” e “civilizados”, como nos tempos coloniais. E isso repercute no imaginário popular com uma força tão avassaladora a ponto de conformar qualquer bom cidadão na ideia de que índio se traduz no mero “mim ser índio, mim mata homem branco”, ou que índio é somente o cara que anda nu, todo enfeitado, com o corpo pintado e faz a dança da chuva o tempo todo. Pelo menos, é essa a representação equivocada feita na comemoração pelo Dia do Índio, no dia 19 de abril, nas escolas.

Casos como os do grupo Tupinambá, que vivem no sul da Bahia, são registrados diuturnamente como alvoroços organizados por indígenas em tom de afronta aos produtores rurais (leia-se mangangões do agronegócio) na disputa de terra.

O que não é contado é que essas mesmas terras são de propriedade dos Tupinambás desde longa data. A área em disputa envolve o território dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, no sul da Bahia, que foi ocupada ainda no século XIX com a cultura cacaueira, o que se intensificou no início do século XX (as obras de Jorge Amado retratam isso muito bem).

Buerarema

Ou seja, estamos falando mais uma vez de terras tradicionais que foram ocupadas por não-índios, roubadas e agora tornaram-se moeda de troca num jogo que só quem ganha é quem tem apadrinhamento político ou influência financeira suficiente, a fim de fazer valer a lei de quem tem mais.

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Comunidades indígenas como os Tupinambás veem a duras penas seu direito a terra ser negado de modo tão acintoso. O mesmo acontece com os Guarani Kaiowá, povo indígena com maior população no Brasil que segue sendo vitimado pelo genocídio indígena nesse país varonil.

<p><a href=”http://vimeo.com/32440717″>À Sombra de um Delírio Verde</a> from <a href=”http://vimeo.com/midiatecacopyleft”>Midiateca Copyleft</a> on <a href=”https://vimeo.com”>Vimeo</a&gt;.</p>

O que se vê são comunidades tradicionais de povos indígenas sendo engolidas pela grande máquina do agronegócio, que está vinculada a jogatinas de partidos políticos, interesses da iniciativa privada, e que visualizam nessas terras, montantes galopantes de dinheiro a sair pela culatra. E que não poupam esforços quando o assunto é exterminar aldeias e populações inteiras e transformar as terras destas em áreas de plantio de cana para etanol, eucalipto e soja.

Tratam-se de terras utilizadas para exploração do biocombustível ou pelo setor pecuarista. Rememoramos um tempo em que comunidades tradicionais vêm sendo extintas e exterminadas, enquanto brincamos de índio, igualzinho como se fazia no Xou da Xuxa em 1989.

 

 

 

Infância, música e pobreza: sua criminalização e alguns aspectos correlatos

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Falar sobre música e infância é por demais interessante. Eu já escrevi um texto no qual se imbricavam música, juventude, sexualidade e mídia, e olha que deu o que falar. O mais interessante, e por ora divertido, foi ver as pessoas vociferando seu ódio na caixa de comentários como se estivessem sendo afrontadas pessoalmente com tudo que escrevi – como se eu tivesse escrito o texto com a intenção deliberada de atacá-las. Achei o maior barato, e confesso que me diverti um pouco com isso, mas o que ficou notadamente marcado quando resolvi abordar esses aspectos foi perceber o tradicionalismo discursivo presente em alguns comentários. Nada mal, creio que cada pessoa tem o direito de expor sua opinião da maneira que lhe cabe. Partindo da prerrogativa que não ofenda o outro, tá valendo.

E agora me proponho a falar novamente sobre música, mas trago como pano de fundo a infância e a pobreza, bem como sua criminalização.

Ora, com as inovações das tecnologias da informação, o acesso às mídias virtuais teve um verdadeiro boom entre os jovens. A informação ganhou agilidade e mutação nos segundos em que é posta na rede mundial de comunicação. Ferramentas como Facebook, WhatsApp, Instagram e outros tem batido recorde de acesso e popularidade. Todos querem estar conectados.

E como toda essa rede de acesso à informação é vitrine de um mundo de consumo em que todos querem se inserir, essas ferramentas servem para propagar em proporções gigantescas e de modo dinâmico tudo que está na moda. A relação de poder que se estabelece numa rede de comunicação muitas vezes consegue transpor limites fronteiriços que estão entrepostos entre o ter e o que quero ser.

A relação de poder se perpetua em diversas áreas, e na música não é diferente. Sempre vejo circular nas redes sociais imagens de jovens, muitas vezes crianças ainda, dançando funk ou o pagode baiano. As crianças se exibem em coreografias tidas como sensuais e até mesmo “pornográficas”. Confesso que não aparenta ser interessante apreciar esse tipo de comportamento ainda na mais tenra idade. Mas o que não entendo é a depreciação que muitos se dispõem a fazer envolvidos numa vil hipocrisia.00

Afirmar que uma criança que dança funk está mais propensa a um futuro indigno é de uma violência tão brutal, quanto afirmar que é também por causa do funk que essa geração de jovens está toda perdida. Ora bolas, partindo do pressuposto que funk é um ritmo originário das periferias, e nelas reside a grande massa populacional que habita esse país, estamos apontando estatisticamente que boa parte da população tende a ser prematuramente mãe solteira, pai delinquente e todos comporão o exército da massa de manobra por gostar de funk.02

Como educadora que sou, devo afirmar em alto e bom som que gostar de funk ou de pagode não faz ninguém mais ou menos delinquente ou irresponsável que outra. (Ao que me consta, não há nenhuma relação entre criminalidade e música.) Conhecer a realidade que cerca cada um é no mínimo honesto, a fim de que se possa inferir algo sobre seu caráter.01

Falar que crianças oriundas da pobreza não terão um futuro digno porque praticam dança sensual e se exibem num jogo que preza pela valorização dos corpos é não deter da menor sensatez que valide um argumento diferente do “eu acho ridículo tudo isso”.

O bom senso foge aos nossos olhos diante de tudo que desprezamos, ou afetivamente aceitamos. E isso me faz lembrar uma situação que ocorreu no tempo em que trabalhei numa escola em Salvador, e tive de realizar uma atividade diagnóstica, a fim de constatar alguns estudantes que porventura tivessem dificuldade com a escrita. Para executar tal atividade, me utilizei da música como instrumento de trabalho.

A tarefa consistia no seguinte: o grupo (eu não fiz sozinha a atividade) tinha de coletar dos e das estudantes o estilo musical que mais lhes agradavam, estes teriam de escrever num papel o nome da banda ou música em troca de uma brincadeira em que havia troca de doces. No final da atividade, fora constatado que noventa por cento da turma gostava da música de uma banda de pagode muito famosa em Salvador, A Bronkka.

O mais engraçado em ter realizado essa atividade foi, posteriormente, ouvir a regente da turma afirmar que desconhecia a tal banda favorita de seus estudantes, bem como desconhecia também a apreciação de seus estudantes por tal ritmo. Segundo a professora, ela nunca havia escutado nada daquela banda musical, pois no local onde ela reside ninguém toca “esse tipo de música”. Ou seja, como ela não foi apresentada à banda, ela ignorava completamente a música que eles faziam. E assim era com seus estudantes, todos moradores de periferia, que ouviam tocar no rádio de suas casas, na casa do seu vizinho, nos eventos sociais em que estavam envolvidos (aniversários, batizados, casamentos e outros) sempre o mesmo ritmo e por isso apreciavam imensamente a ponto de desprezar outro ritmo mais bem aceito socialmente por simplesmente ignorar sua existência.

Ou seja, nós apreciamos tudo aquilo que nos é apresentado. Como disseram os Racionais MCs, as pessoas se espelham em quem está mais perto. Não dá para gostar de música clássica quando a comunidade em que se vive só toca arrocha. Falar que crianças que dançam funk estão perdidas é um juízo de valor infame para quem sequer apresentou a estas crianças a NEOJIBA, a Jam Session do MAM, a OSBA, e tantas outras.

Quantos Joões Carlos Martins serão necessários para apresentar às crianças música clássica num projeto itinerante que leva eruditismo às periferias do Brasil? Quem sabe assim as crianças poderão escolher se gostarão de funk ou música erudita.03

É muito fácil achincalhar publicamente uma menina favelada que “rala a tcheca no chão” ou se acaba no arrocha, mas alguém foi lá mostrar a ela alguma coisa diferente? Quantas pessoas já se deram ao trabalho de montar alguma oficina de balé em alguma associação comunitária ou centro social urbano de um bairro periférico?

Até lá, retruquemos nossos preconceitos dentro de nós mesmo antes de proferir opiniões que em nada contribuem para mudar o cenário em que vivemos atualmente. Se somos capazes de promover mudanças, que a promovamos positivamente. Sejamos, nesse sentido, construtivistas.

“Matei por amor”: a complexa noção do ataque vil às mulheres

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O que faz um homem esfaquear sua ex-companheira numa passarela da cidade de Salvador e levá-la à morte por desconsiderar a hipótese de ela não querer mais viver uma relação contigo?

Foi essa a pergunta que o meu companheiro fez hoje à noite após eu ter contado a ele um caso que vi no jornal a respeito de uma mulher de 20 anos de idade, moradora do Parque São Cristóvão, que foi brutalmente assassinada pelo ex-marido, um homem de 35 anos, com 15 facadas quando estava a caminho do trabalho, num grande shopping center de Salvador.

Respondi a pergunta dele da seguinte forma:

A complexa noção de que mulheres são (estão) subordinadas ao poder do homem. O poder do patriarca, chefe de família. E o poder do homem sobre a mulher passa do pai para o marido nessa maldita sociedade machista em que vivemos.

Somos criadas (adestradas) desde a mais tenra idade a pensar e agir sob a tutela de um ser masculino (pai, avô, tio, irmão e, posteriormente, o marido). Não detemos de autonomia suficiente para gerir sequer nossa vida e sermos donas dos nossos corpos. E assim segue.

A religião cristã nos diz isso quando prega que uma mulher fora extraída da costela de um homem, e por isso lhe deve obediência. Não se submetendo a tal obediência, só lhe resta o castigo. Tão logo, Eva foi expulsa do Jardim do Éden, e toda a sua geração paga pelo feito até hoje. Está posto nas Sagradas Escrituras.

A família nos ensina isso a todo o tempo, desde quando nascemos, quando separa roupa e brinquedos de menina X menino (a ambivalência do rosa X azul). Quando a nossa mãe diz que devemos sentar de pernas fechadas, nos comportar e nos resguardar sexualmente para sermos consideradas “moças direitas”, e o nosso irmão adquire o consentimento para fazer o quer e bem entende, pelo simples fato de ser “homem”.

A escola também nos educa nesse sentido, quando planeja campeonato de menina X menino, e nos instrui a sermos boas mães e cidadãs.

A TV exibe a todo instante que “mulher tem que se dar ao respeito”, caso o contrário é considerada uma “periguete”.  A exemplo, temos a “periguete” Valdirene, interpretada por Tatá Werneck na novela Amor à Vida, e o  sommelier  “conquistador”, interpretado por Cauã Reymond que come todo o elenco feminino da série Amores Roubados.

Entender o que se passa na cabeça de uma criatura que dá golpes de faca em uma jovem por não aceitar o fim do relacionamento perpassa pela análise socioantropológica do cotidiano que nos cerca, da sociedade que se sustenta numa base patriarcal que nos agride de modo vil. É ter a perspicácia para notificar tais ações e se valer dos sentidos que estão imbricados em tudo que se passa.

É isso que se passa na cabeça de um homem que mata a mulher com quem se envolveu pelo fato de esta não mais querer se envolver com ele.

Uma biblioteca acaba de ser queimada…

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Madiba, ou como muitos conhecem, Nelson Mandela seguirá sua trajetória em outro horizonte.

Segundo um provérbio africano, quando uma pessoa idosa morre, queima-se uma grande biblioteca. No caso de Madiba, foi queimada uma biblioteca incomensurável.

Seu histórico de luta, suas conquistas, seus 27 anos de prisão por lutar contra o regime no Apartheid na África do Sul permanecerá presente na memória dos seus fiéis seguidores. E não só na memória, mas na luta que travamos e travaremos em prol de uma igualdade que ele tanto prezava.

Assim como os demais que encamparam a luta pelo reconhecimento do povo negro, o nome de Nelson Mandela, sua história de vida e luta pela dignidade do seu povo ecoará nos quatro cantos do mundo, a fim de que nunca esqueçamos tudo que ele fez até os seus 95 anos de vida. Vida que dedicou a um povo.Vida que esteve em abstenção quando foi mantido na prisão.

Sua serenidade para lidar com todos que o oprimiu e/ou ceifou momentos de sua vida há de ser lembrada e memorada por todos, a fim que tenhamos a mesma serenidade para continuar na luta antirracista.

Ainda que me debruce por várias linhas, faltarão palavras para expressar o que foi Nelson Mandela na conjuntura política da África do Sul.

Faltarão palavras que possam extravasar o que muitos de nós, do outro lado do Atlântico está sentindo neste exato momento.

Faltarão palavras…

Siga em paz, Madiba!

Madiba 1

A representação social da mulher negra nos programas de TV: do estereótipo à sexualização

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Novembro Negro. Semana da Consciência Negra. Esse foi o advento que originou esse post.

Esse texto é uma versão revista e ampliada de uma palestra proferida por mim no dia 13 de novembro de 2013, na abertura da Semana da Consciência Negra da Escola Municipal da Palestina.

nega maluca

Ao ver a imagem acima, pergunto: Qual mulher negra ao ver essa imagem consegue se identificar, ou melhor, quantas de nós, mulheres negras, olhamos no espelho e nos vemos desse jeito?

Imagino que a resposta das mulheres pretas que lerão esse post será negativa. Não. Eu não me identifico com essa imagem. Ou, não. Eu não sou o que vejo na imagem. Pois bem, é com essa enquete que levantarei alguns pontos pertinentes à representação social da mulher negra nos programas da televisão brasileira. Para tanto, farei uma breve digressão ao nosso passado escravista, a fim de compor o cabedal teórico suficiente para coadunar os pontos do que será apresentado adiante.

O Brasil viveu mais de trezentos anos, mais precisamente, trezentos e cinquenta oito anos de regime escravista negroafricana. A historiografia nos diz que homens, mulheres e crianças foram sequestradas de várias regiões de África e trazidas para o Brasil, a fim de servir o sistema comercial e exploratório que a escravidão perpetuou.

Mulheres africanas que aqui aportaram vilmente tiveram sua força de trabalho explorada, sua cultura expropriada, e sua sexualidade abusada.

Para atender as necessidades do regime em que foram postas, negras escravizadas desde muito cedo foram forçadas a trabalhar para garantir o conforto das mulheres brancas portuguesas – sinhás –, lavando, passando, cozinhando, cuidando dos filhos e servindo de ganhadeira (escrava de ganho; executavam atividades remuneradas, e entregavam a (o) senhor/senhora uma quota diária do pagamento recebido). E não somente isso, a escravizada também “servia” sexualmente ao seu senhor, que, por ser propriedade, era lhe dado o uso que fosse julgado conveniente, inclusive o de ser estuprada para satisfazer os impulsos sexuais dos senhores de engenho. E ainda há quem diga que as relações entre senhores brancos e escravizadas negras foram consensuais.

Para além da simples satisfação das taras sexuais dos senhores de engenho, dos filhos e dos cupinchas destes, muitas dessas mulheres eram engravidadas para gerar leite e servir de ama de leite aos filhos das sinhás, e seus filhos servirem de mão de obra escravizada para seu senhor. Ou seja, além de estupradas, seus filhos eram-lhe tirados do colo para servir de mercadoria, e produzir riqueza com sua força de trabalho. Ser escravizada a extrai do status de pessoa humana, e a condiciona ao papel social da bestial.

Ou seja, a violência sexual não era só uma questão de sadismo senhorial. Era uma prática inserida na ordem econômica da época.

Diante de todos esses destratos sociais pelos quais passavam as mulheres negras escravizadas durante os trezentos e cinquenta e oito anos de escravidão negroafricana no Brasil, o reforço à desintegração de sua identidade continua sendo veementemente incorporado no tecido da sociedade brasileira, e se ancora nas estruturas sociais que preconizam sua inferioridade.

No avançar dos anos, a concepção de mulher negra construída pela escravidão a confere toda sorte de desprezo e desmazelo estrutural. E por conta disso, toda sorte de preconceitos e discriminações nos são lançadas.

As heranças escravistas deixaram marcas tão densas quanto as marcas de ferro nos seus corpos que as identificavam com as iniciais dos nomes da família que pertenciam.

Deste modo, o preconceito contra a mulher negra a restringe aos porões sociais mais profundos, lhe dizendo que: sua força de trabalho é maior, e assim pode ser explorada (“as negras são fortes”); seu tipo físico não é o padrão ou o desejável, e suas características físicas se tornam motivo de piada, e então é degenerada; és produto de consumo, o que remete a imagem da mulher como fonte de sexo fácil.

Perante o exposto, a mulher negra ocupa o mais baixo nível da escala social. E isso se dá nos postos de trabalho, nas relações matrimoniais – prova disso é a clarividente escolha dos jogadores de futebol, não só eles, às mulheres brancas para constituir relação afetiva matrimonial –, nas peças publicitárias, nos programas de TV (ver A Negação do Brasil), nos espaços de poder, e tantos outros que seu acesso é restringido.

Pirâmide Social da Mulher Negra

É com base nesse espectro que as grandes mídias reorganizam esses destratos sociais, e aloja-os no mote dos estereótipos. Nessa linha, a representação social da mulher negra ampara-se no esteio dos resquícios escravistas presentes na nossa sociedade.

Nas peças publicitárias, isto se faz notório nas imagens abaixo:

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“É pelo corpo que se conhece a verdadeira negra”. Essa é a mensagem que a Brasil Kirin Indústria de Bebidas S.A., detentora do logotipo da cerveja Devassa nos diz. Que a mulher negra é identificada pela suntuosidade do seu corpo, que reiteradamente é remetida à fonte de sexo fácil.

A mulata faceira, que tem o molejo na cintura e exala o “cheiro exótico” para conquista de um bom homem.

As reminiscências do passado escravista vêm à tona numa peça publicitária de uma cerveja, o que nos mostra que a condição atual da mulher negra não sofreu um avanço positivo a ponto de reverter seu sentido representativo nos espaços públicos.

Sua sexualização se dá no sentido de conceder ao outro o direito de usufruir dos plenos poderes de usar e abusar do seu corpo como uma propriedade, e assim incidir nos pressupostos defendidos por Freyre (2006) quando definiu a serventia sexual da escravizada: (…) “Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem”.

Afinal de contas, como bem cantarolou Joaquim Silvério de Castro Barbosa, na marchinha de carnaval “O teu cabelo não nega”, sucesso do carnaval de 1932: “O teu cabelo não nega, mulata/Porque és mulata na cor/Mas como a cor não pega, mulata/Mulata eu quero o teu amor”.

Adiante, o grupo Bombril, numa campanha que visava “valorizar a mulher”, presenteou-nos com a peça “Mulheres que brilham”, e utilizou como imagem o estereótipo da mulher negra, e o seu cabelo crespo associado à lã de aço que vende no mercado.

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Tão acintosa quanto a peça publicitária é tirar-nos o direito de reconhecimento de nossa identidade para aceitação e construção da autoestima da mulher negra que é tão destruída.

Afrontar-nos de modo tão vil. Essa foi a intenção do grupo Bombril ao criar a peça num país que é o segundo maior consumidor de cosméticos do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. Pois os padrões de beleza construídos aqui nos diz que temos de ser branca, ter cabelos lisos e sedosos. Tão logo, ter cabelo crespo não significa estar dentro do padrão de beleza exigido.

Mas não foi só esse grupo que afirmou isso num comercial. A marca Dove também deu suas tacadas na divulgação de mais um produto da sua linha de cosméticos amplamente comercializados no mundo.

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Na imagem exibida acima, a marca Dove afirma que seu produto detém o poder de deixar sua pele linda e macia. Na imagem uma mulher negra é utilizada para representar o antes, e a mulher branca o depois do produto. E no fundo da tela, duas superfícies que representam a pele antes e após o uso do produto (áspera e lisa).

Creio que não há forma mais explícita de subjugar a mulher negra como não-ideal, pois no sentido em que se toca, esta tem a pele áspera, escura e indesejável podendo ser comparada a uma lixa de construção. Em contraproposta, a mulher branca é símbolo da beleza ideal. Pele lisa, clara, quase um porcelanato de tão liso e espelhado que ele possa transparecer. Essa peça publicitária só contribui para reforçar a imagem da mulher negra como “antimusas da sociedade”, como disse Sueli Carneiro.

A ordem social que vigora não só infere, mas remete a todo o momento que a mulher negra está sujeita a qualquer valoração que lhe possa ser feita.

Sua condição de usufruto perpetua uma série de barbáries e atentados violentos, e isso nos mostra quão vil sua imagem foi incutida no imaginário popular, e tem ajudado a fomentar toda má sorte que lhe é lançada.

O desprezo, o despropósito e o descaso com que são tratadas as achacam no pré-sal da dignidade humana.

Desfigurar suas características físicas, bem como debochá-las é um forma encontrada de não assegurar um poder de decisão sobre si. Pois uma mulher negra “não serve para casar”, está fadada a servir como step sexual de homens incontrolados instintiva e sexualmente, e por isso tem que aceitar o que Deus lhe reservou, ou seja, qualquer um bem intencionado, ainda que não seja do seu agrado. O que vem a justificar os estupros, pois mulher negra (e feia) não tem escolha, tem sorte.

*          *         *

A imagem que segue abaixo compõe a seara do que tomamos como humor racista. Para tanto, me utilizarei dos programas de TV, que tem se constituído um solo fértil no que tange às construções negativas da mulher negra.

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Julgo a imagem acima clássica por exibir Billy Van, personagem interpretado pelo “humorista” William H. West (1853-1902), um ícone norteamericano que representava o blackface nos espetáculos de Minstrel Show no início dos anos de 1900 nos EUA, associado a imagem de Rodrigo Sant’anna que representa a personagem Adelaide em 2013.

Minstrel Show era um espetáculo realizado por companhias de teatro compostas exclusivamente por atores brancos que pintavam suas faces de preto e faziam todo tipo de deboche no palco para configurar a imagem do negro na sociedade americana. (Ver Bamboozled)

Importado dos EUA, como quase tudo que consumimos na televisão brasileira, o blackface passa a ser encenado por Rodrigo Sant’anna em Adelaide, que se transfigura de mulher negra, descabelada, desdentada, suja e mal instruída.

Temos aí mais um reforço ao estereótipo negativo construído acerca da mulher negra no Brasil.

Adiante, temos a representação negra feminina como símbolo do exagero, da macaca de circo representada por Priscila Marinho, na personagem “gentilmente” apelidada de “Chocotona”, na novela Aquele Beijo, de autoria de Miguel Falabella (o mesmo que adorava esculachar os costumes da pobreza no Sai de Baixo através do seu alter-ego Caco Antibes), exibida pela Rede Globo nos idos de 2011/2012.

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Em sequência, temos a negra servil, que se ajoelha e pede perdão e leva um tapa da sinhá, na cena que foi ao ar em 20 de novembro de 2010, em mais uma novela Global, Viver a Vida. Um tapa na cara do Movimento Negro, na data em que se comemora o Dia da Consciência Negra.

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Para além da ridicularização da mulher negra na figura da Chocotona, ou da servidão de Helena, interpretada por Taís Araújo, há também a hipersexualização da Globeleza, a mulata suntuosa de todos os carnavais que a emissora transmite. Ou ainda, as musas do carnaval exibidas no Caldeirão do Huck.

12.1

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O que me causa estranheza, é o fato de que mulheres negras antes tidas como antimusas, ganham notoriedade no carnaval e passam a ser musas, e tem sua sexualidade exacerbada pela mídia.

A TV brasileira, de fato, tem se especializado em arremessar a mulher negra nos mais improváveis valões sociais existentes, e concomitantemente reforça sua hipersexualização na figura da mulata rebolativa dos eventos carnavalescos.

Quem não se lembra do “Pi pi pi pi pi, olha o recalque!”, de Maria Vanúbia, interpretada por Roberta Rodrigues, na novela Salve Jorge, ano passado? A mulata faceira que tomava banho de sol na laje e fazia a alegria da vizinhança?

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As desfigurações da mulher negra nos espaços de mídia no Brasil se dão no mais amplo leque a que possa se estender o racismo sem ódio.

As nuances do racismo se fazem presentes em diversas plataformas de comunicação. E como diz que a vida imita a arte, a estrutura racial na qual está dividia o país não deixa de ser representada nos programas de TV, nas peças publicitárias ou qualquer outro espaço inserido no seio da sociedade, pois o racismo se perfaz do arcabouço sistêmico social – precedente histórico escravista – para agir de modo contundente e dissimulado.

Na imagem abaixo temos mais um reforço ao estereótipo negativo à mulher negra transfigurado em modelos que usam peruca de lã de aço num desfile de moda organizado por Ronaldo Fraga. O renomado estilista com a pretensão de fazer uma “singela” homenagem à cultura negra põe perucas de lã de aço nas modelos.

Devo pensar. Se ele queria mesmo homenagear a cultura negra, por que não fazer um desfile com temas da cultura negra ou com modelos exclusivamente negras? Fica a dúvida.

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Quem não se lembra da polêmica em torno da marca Cadiveu, que exibiu cartazes com fotos de pessoas de peruca black, e a seguinte frase: “Eu preciso de Cadiveu”?

Por que precisaríamos de Cadiveu para alisar nossos cabelos quando na verdade o que queremos é ser respeitada como somos: mulheres negras, de cabelos crespos e volumosos?

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Até aqui foram elencadas uma série de situações envolvendo ataques à mulher negra. Seja quanto ao seu físico, ou até mesmo à sua sexualidade, e os fatores intrínsecos que acometem.

Mas devo dizer que na tentativa de contrariar o que é dito, algumas mulheres seguem na contramão do preconceito e mostram que é possível reverter o cenário atual no que tange a representação social da mulher negra.Sueli Carneiro

As mulheres negras têm contornado esse cenário, e desfeito sua objetificação no sentido de propor debates e trazer à tona uma ressignificação de sua imagem. E são elas:

Ana Célia da Silva Ana Maria Gonçalves Carolina Maria de Jesus Elisa Lucinda Ivete Sacramento Luislinda Valois Mãe Stella de Oxóssi Vilma Reis

Sendo assim…

REFERÊNCIAS:

CARNEIRO, Sueli. Liberdade de Expressão e Diversidade de Gênero. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=IwdVISYxoSc. Acessado em 11/11/2013

CONCEIÇÃO, Fernando. Como fazer amor com o negro sem se cansar e outros textos para o debate contemporâneo da luta anti-racista no Brasil. São Paulo: Terceira  Margem, 2005.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª ed. São Paulo:Global, 2006.

GONÇALVES, Ana Maria. Carta aberta ao Ziraldo. Disponível em http://www.idelberavelar.com/archives/2011/02/carta_aberta_ao_ziraldo_por_ana_maria_goncalves.php Acessado em 22/11/2013

____________. Um defeito de cor. 6ªed. Rio de Janeiro:Record, 2010.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 9ª ed. São Paulo:Ática, 2007.

LIBENCE, Paula. A vênus negra, a mulata exportação e o corpo da mulher negra na sociedade do espetáculo. Disponível em: https://escrevivencia.wordpress.com/2013/01/11/a-venus-negra-a-mulata-exportacao-e-o-corpo-da-mulher-negra-na-sociedade-do-espetaculo/. Acessado em 12/11/2013

____________. Bonde das Maravilhas, a sexualidade da mulher negra e a hipocrisia nossa de cada dia. Disponível em: https://escrevivencia.wordpress.com/2013/05/17/bonde-das-maravilhas-a-sexualidade-da-mulher-negra-e-a-hipocrisia-nossa-de-cada-dia/. Acessado em 12/11/2013

SANTOS, Rogério. Racismo é engraçado? Disponível em: http://efemeridesbaianas.blogspot.com.br/search?q=racismo+%C3%A9+engra%C3%A7ado. Acessado em 12/11/2013

____________. O sapatinho da Cinderela, o alisamento de cabelo e a opressão racista. Disponível em http://efemeridesbaianas.blogspot.com.br/2010/12/o-sapatinho-da-cinderela-o-alisamento.html. Acessado em 22/11/2013

O efeito pastoreio nas redes sociais

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Em comemoração ao Dia das Crianças, algumas pessoas no Facebook resolveram homenagear a data pondo fotografias suas dos tempos de infância. Acho lícito. Se você tem um perfil pessoal, não há nada que o impeça de usá-lo como quer e bem entende. Partindo da premissa de que não agrida ou ofenda a outra, tá valendo.

Mas, até agora, o que não consegui entender foi essa ação em massa de revirar o baú das lembranças familiares, do tempo em que fotografias eram tiradas naquelas máquinas hoje consideradas de uma breguice sem tamanho, com aquele velho filme Kodak de doze, vinte e quatro ou trinta e seis poses, a fim de recuperar fotografias dantescas e colocarem no perfil de uma rede social. Se isso for uma brincadeira por conta do Dia das Crianças, eu acho meio sem graça, o que não me parece ser.Pastoreio

A ação transparece uma suposta ideia de pastoreio. Sim, pastoreio. Um homem num pasto vai pastoreando as ovelhas. Isso é pastoreio.

Despido de qualquer sentido político, as pessoas seguem sendo pastoreadas por uma rede social. Isso muito me assusta, pois pensando que o Dia das Crianças não passa de uma data pura e exclusivamente comercial (como todas as outras “datas comemorativas” existentes ao longo do ano), criada para alimentar os anseios capitalistas e a necessidade de um mercado que nos exaure, penso que seja uma tremenda falta de bom senso.

Daí devo inferir o quanto é fácil manipular a outra. Como é fácil colocar as pessoas para fazer o que alguém, sabe-se lá quem, diz. O bom e velho “comportamento de manada”, em que as pessoas fazem algo sem nem saber o que estão fazendo. Todo mundo fez, eu vou fazer também.

O Terceiro Reich, liderado por Adolf Hitler na década de 1930, exterminou milhares de judeus, ciganos, negros e homossexuais numa ação igualzinha a que se repete no Facebook. Os ideais nazistas foram introjetados na mente do povo alemão quase que da mesma maneira: a máquina de propaganda, liderada por Joseph Goebbels, elaborou várias peças publicitárias, filmes, cartazes e livros com o intuito de enfiar a ideologia nacional-socialista na cabeça das pessoas e todas elas compraram a ideia sem nem saber o que estavam levando. Sem contar os discursos do Führer, apoteóticos, espetaculares, cheios de efeitos especiais e jogos de cena, tudo para levar o público ao êxtase e fazê-lo entender que aderir ao projeto nazista e executar tudo o que o líder mandava era certo e recomendável.Hitler 1

O único fator que se difere é que a ação proposta pelo ditador estava eivada de sentido político: matar pessoas que não pertencessem à raça ariana. Hitler e os demais oficiais tocavam as ovelhas do seu exército dizendo que eles deveriam matar todo e qualquer cidadão que não fosse da raça ariana.Hitler

Pode parecer exacerbada a analogia, mas se essa ação do Facebook partisse de um pressuposto político como as revoltas que aconteceram no Brasil no mês de junho faria sentido – o que não é o caso. O que fica explícito é o caráter manipulável das pessoas, e por isso demonstro aqui minha indignação, não com o propósito de condenar quem o faz, mas de sinalizar que ações como essas denotam nada mais nada menos o fator de vulnerabilidade da opinião pública. É também por isso que a Rede Globo faz tanto sucesso num país como o Brasil.

E aproveito para socializar pela enésima vez um texto que publiquei já há algum tempo sobre o que a voracidade capitalista faz conosco sem que percebamos: Feliz Dia Das… – As Felicitações que o Capitalismo nos Impõe.

 

 

Pelo direito de ser puta: uma discussão sobre sexualidade, gênero e raça no Brasil

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Imagino que ser puta seja uma tarefa árdua. Chamá-las de “mulher de vida fácil” é uma tremenda desonestidade, pois a vida das mulheres que, por (falta de) opção, caíram na prostituição é tudo, menos fácil. Ficar na rua, exposta ao relento, sem nenhuma segurança, correndo o risco de levar um golpe de taco de beisebol desferido por um pitboy; entrar num carro sem saber se sairá dele viva; atender um cliente nojento, grosso, repugnante, que quer te tratar como lixo, te obrigar a satisfazer os desejos sexuais mais inconfessáveis e ainda chamá-lo de “gostoso” sem ter a menor garantia de que ele pagará o programa e de que ele não te matará de porrada. Sem contar as enormes chances de pegar uma doença sexualmente transmissível e/ou de engravidar de um homem que você nunca mais verá na vida, e ter de parir e criar uma criança que será chamada pelo resto da vida de “filho da puta”. Vocês acham que levar uma vida dessa é fácil? Eu, não.

<p><a href=”http://vimeo.com/14814248″>A PONTE</a> from <a href=”http://vimeo.com/user1075619″>joaowainer.com</a&gt; on <a href=”https://vimeo.com”>Vimeo</a&gt;.</p>

No entanto, o que mais provoca incômodo numa sociedade de base patriarcal e fundada nos pilares machistas na qual vivemos é a liberdade sexual que as putas detêm. Uma mulher que faz o que quer com o próprio corpo, dá para o homem que bem entende e ainda ganha uns trocados por isso é uma coisa que definitivamente põe em perigo o lugar social das senhoras casadas e das “moças de família”. Afinal, saber que é possível viver de outra forma que não casar, virar dona de casa, engravidar, cuidar dos filhos, lavar, varrer, passar, esquentar a barriga no fogão e esfriá-la no tanque é mesmo muito afrontoso aos machos. Ah, isso com certeza é motivo de ódio por parte das outras que por pudor ou hipocrisia não se deleitam ao prazer de ser quem é.

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O texto que escrevi há três meses sobre o Bonde das Maravilhas gerou muita discussão e feriu os brios de uma gente hipócrita que insiste em patrulhar a sexualidade alheia e puni-la no tribunal inquisitivo da moral e dos bons costumes. Houve quem o considerasse polêmico. Eu discordo por pensar que tudo que soa polêmico faz parte de algo que deve ser negado ou não discutido. Algo que visa manter uma conveniência óbvia e perfeita. Ser condenado à vala comum do silêncio e do esquecimento.

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Mas o que vou discorrer nessas linhas parte de uma discussão sobre o texto do Bonde, e que, por ser polêmico, tornou-se ofensivo aos olhos puristas da nossa sociedade.

O texto foi repostado em vários outros blogs e sites da internet, e alavancou outras discussões a respeito do grupo por parte de outras pessoas que também defendem o direito das integrantes de dançar e não ser condenada por isso. Daí, socializei todas as repostagens e resultados: o que provocou mais que incômodo; o que pude ver foi o ódio explícito e mordaz. Não dimensionei o furor que as meninas do Bonde provocariam.

Tudo começou com a repostagem que fiz no Intelectualidade Afro-brasileira, um grupo do Facebook defendido por alguns membros por ser voltado para discussões axiológicas, epistemológicas, e que funda os princípios da hermenêutica discursiva. Ponto. Houve até quem dissesse que este detinha de um nível mais elevado de discussões.

Tento entender o que é um “nível mais elevado de debate” que não caiba o viés de sexualidade, gênero e raça. Eu, do alto da minha ignorância, imaginei que um grupo com esse nome sustentasse discussões a respeito de racismo também. Enfim.

Até que uma pessoa, também membro do grupo, desferiu contra mim toda sorte de agressões, e finalizou chamando-me de “puta”. Puta por defender o direito de garotas que dançam e detêm autonomia sobre seus corpos e o direito de usá-los como bem entendem, fazem sucesso na mídia e estão cagando para o que outros proferem a seu respeito. E mais: puta e pedófila por defender, e, assim, “propagar o abuso sexual de crianças” veiculando meu texto.

Por que escolhi ser puta

Por que escolhi ser puta 2

Confesso que foi um choque. Nunca havia entrado num debate tido como intelectual e ser chamada de puta como se estivesse na ponta de um brega. E olha que o grupo é de um nível mais elevado, fico pensando se não o fosse.

Pois bem, sou puta, e até gostei da alcunha.

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Sou puta, pois sou livre para ser quem sou e não temer maiores rechaços por proferir o que penso. Sou puta por defender o direito de expressar-me discursiva ou sexualmente do modo que mais me convém.

Ser puta na nossa sociedade, como já foi dito no início do texto, não é tarefa fácil, principalmente quando nos deparamos com ideias machistas em quase todos os campos de atuação. Puta no feminino é algo ruim, e traz consigo todo o desprestígio de ser quem o é. Puto no masculino carrega o aspecto positivo, e mais uma vez machista de conceder ao homem a condição proeminente de ficar puto e assim sustentar sua verve de macho por conta disso.

Puta quando é atribuído à mulher tem o dom de colocá-la na vala da sociedade como o pior dos seres que a habitam. Puta quando é atribuído ao homem, neste caso me refiro aos homoafetivos, tem o poder de descaracterizá-lo e remetê-lo ao lugar da mulher, que, por convenção social, idealização religiosa ou prepotência discursiva é inferior ao homem.

O objeto de desejo do texto sobre o Bonde é levantar um questionamento pertinente aos rechaços que as garotas vêm sofrendo por serem que são: negras, faveladas e jovens de sucesso. Sim, sucesso que não confere somente a Anitta, criadora do quadradinho de quatro, e que só não o faz para parecer fina. Onde está a fineza de Anitta? Está no ataque às garotas?

A capacidade abstrata de algumas pessoas é, de fato, um fator relativo quando se trata de leitura mais densa e complexa. Até aí, tudo bem. O que não entendo nem admito é ser agredida por pessoas que não detêm dessa capacidade abstrata, e por isso, desferem toda sorte de ódio contra isso. Liberdade de expressão? Talvez. Eu diria que isso passa pela liberdade de opressão. Sim. O direito que alguns investem para oprimir o outro por não concordar com suas ações.

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O direito de ser puta é meu por excelência, e isso ninguém tira. Então só tenho a lamentar por todas que não se permitem ser quem é, ou falar o que pensa.

Se ser puta é defender o direito de outras mulheres fazerem com seus corpos o que bem entenderem, sou puta.

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Se ser puta é marchar contra a violência física, verbal e simbólica contra a mulher, sou puta.

Se ser puta é defender o direito ao aborto, pois entendo que o corpo é propriedade minha, e não do Estado, sou puta.

Se ser puta é acreditar na possível sociabilidade de termos mulheres se amando com outras mulheres e constituindo famílias em seus lares, e não serem ofendidas por conta disso, ou serem agredidas física ou verbalmente, sou puta.

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Se ser puta é pensar que posso conviver com mulheres que usam seu corpo como instrumento de trabalho, e não me sentir superior a elas por conta disso, sou puta.

Se ser puta é ter consciência de que dançar e cantar funk não é justificativa para os casos de abuso sexual de jovens e adolescentes, e para isso, eu desafio quem me apresente tais estatísticas que comprovam a relação do funk com os estupros, sou puta.

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Ah! Finalizo esse texto com a declaração feita por Nilton Luz, negro, gay, economista, militante do movimento negro e LGBT. Imensos agradecimentos pelas palavras.

“Eu quero entrar nessa briga e ser chamada de puta pelos machistas, até que essa palavra deixe de significar a escravização do corpo das mulheres. As putas são livres, as putas sabem viver, eu sou puta com muito orgulho.”

Ele também é puta.