Especismo às Avessas

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Quando nos apoderamos de determinados conteúdos e alguns conhecimentos, feliz ou infelizmente, a depender do caso, ficamos mais críticas para tudo nessa vida.  Até uma pedra adquire outros significados quando passamos pela rua. E vendo o vídeo A Revolução da Colher, que fala de um mundo mais justo sem maltratar os animais, dando uma ênfase aos hábitos alimentares de nós, humanos, é que atentei a outro detalhe que me chamou a atenção neste fim de semana. Foi quando saía de casa para ir ao mercado com meu esposo e vi na casa da vizinha um cachorro preso à corrente, exposto ao sol.

Para muitas pessoas, isso é uma cena banal como qualquer outra (o que há de inusitado ao ver um cachorro preso à uma corrente?), mas foi com aquela cena que pude perceber o quanto maltratamos os animais. Não falo só da hegemonia alimentar de nós, humanos, de manter uma alimentação majoritariamente oriunda de fonte animal. Alimentação esta, especialmente a carne, obtida de forma violentíssima, na qual animais têm sua vida retirada ainda muito jovens para alimentar esse grande mercado consumidor. Vejam o vídeo A Carne é Fraca e saberão do que estou falando.

Falo do especismo, que, para quem não sabe, é a hegemonia de uma espécie sobre a outra. Neste caso é o modo como se concebe a hegemonia da espécie humana sobre a espécie animal.

Para vocês entenderem melhor o que digo, explicarei uma situação verídica sobre a soberania humana sobre os animais. Recentemente uma colega que tem um cachorro poodle disse-me que seu cãozinho estava muito inquieto e parecia estar sentido fortes dores (não sei de onde ela tirou essa ideia, visto que ela não tem habilitação funcional de veterinária) e então ela resolveu dar-lhe meia banda de anador (um medicamento de efeito analgésico para uso em humanos) para aliviar a suposta dor do seu poodle.

Quer dizer, ela, do alto de sua hegemonia de espécie, aplicou no cão um medicamento de uso humano, pois o animal pertencia a ela, ou seja, ela detinha poder sobre ele. Era a máxima do “eu detenho poder sobre ele porque ele me pertence e é só um animalzinho.”

Minha mãe é uma pessoa que amo de paixão. Ela tem um amor, um apego, sei lá o que, por pássaros. Ela tem verdadeiro apreço a estes bichos. Acho que desde quando eu ainda era um zigoto que minha mãe fomenta essa paixão desenfreada por pássaros. Até aí, nada contra, mas o que me deixa inconformada é que ela acha que pelo simples fato de alimentá-los, cuidar e mantê-los num habitat (uma gaiola) ela acha que eles estão bem. Se a posição se invertesse será que ela continuaria pensando do mesmo modo? Uma vez, fiz essa pergunta pra ela porque ela havia esquecido de alimentar um dos seus pássaros. Eu, enfurecida, falei se ela achava justo mantê-lo preso numa gaiola, sem água e comida, e melhor, se ela aceitaria ficar numa jaula, sem água e sem comida. Ela, até hoje, não me respondeu.

Vocês podem até achar bobagem tudo que falei até aqui, mas tentem estabelecer essa relação de algumas pessoas com os animais com o sequestro de pessoas. Não conseguem ver relação entre ambas?

É simples: não sei se vocês ainda se lembram do caso do sequestro na década de noventa do irmão da dupla Zezé di Camargo e Luciano. Um cara paraplégico que foi sequestrado, mantido em cativeiro por dias enquanto os sequestradores tentavam extorquir dinheiro da família da dupla famosa. Eles cortaram até a orelha do coitado para mostrar pra família que não estavam de brincadeira e queriam grana.

Pois é, tive de fazer esse elo para explicar pra vocês que esta relação é mais que válida. O sequestro de pessoas, na sua maioria, visa manter um indivíduo em cárcere para tentar tirar dinheiro de seus familiares. O sequestro de animais tem a mesma funcionalidade. Quando se tira um animal de seu habitat natural e tenta inseri-lo num ambiente que não é o seu, e sujeito à vontade de outros, isso também é sequestro.

A violência que o irmão de Zezé di Camargo sofreu ao ser mantido no cárcere, ter sua orelha cortada a sangue frio para pura obtenção de lucros da família, por parte dos sequestradores está equiparada a violência que os animais sofrem ao ficarem em cativeiro: serem castrados para engordar mais rapidamente, terem os seus órgãos genitais amarrados para pular [caso das vaquejadas], terem os seus bicos serrados para não furarem os outros [caso dos pintos], serem marcados com ferros em brasa [como acontecia com os escravizados]… Esse tipo de violência se dá na relação homem/homem e homem/animal. Porque animais não têm atitudes violentas com outros animais.

Vocês podem até me dizer que existem animais silvestres e domésticos. Vos digo que não, não há. Há, de fato, animais que por convenção social são domesticados para viverem em sociedade, o que não é a mesma coisa. Por que será que ninguém domestica uma leoa, um javali, um crocodilo? Tentem imaginar por quê.

Aí vocês retomam a velha tecla. Que chatice, Paula; você e seus disparates. Acham que o que falo é besteira? O sequestro de pessoas não pode jamais ser comparado ao sequestro de animais! Não?!

Pode sim. Qual o objetivo quando se sequestra uma pessoa na maioria dos casos? Não falo aqui dos sequestros motivados por razões passionais! Não é ganhar dinheiro com o resgate? Então? O sequestro de animais tem o mesmo objetivo. Quando se sequestra um animal, prende-o e vende-o a qualquer preço no mercado, visa-se obter dinheiro com a venda dele. Agora veja, ambos são mantidos em cárcere privado, em péssimas condições de vida, com água e alimentação escassas. Expliquem-me a diferença. Nenhuma. A não ser pelo fato do especismo do qual falei anteriormente, a soberania da espécie humana sobre a espécie animal.

Algo muito semelhante ao que venho relatando até então, e presente na nossa história, está no tráfico de escravizados. Por quê? Simples: ao sequestrar animais e vendê-los no mercado informal, o objetivo é ganhar dinheiro com o tráfico. Ou seja, retirá-lo do seu ambiente natural, condicioná-lo em péssimos ambientes, deixá-los sem água, sem comida e lucrar com sua venda (sem contar aqueles que são mortos durante a viagem). O tráfico de escravizados circulava no mesmo âmbito. O comércio de africanos consistia na retirada de pessoas de seus locais de origem, alojamento em porões, transporte da África até aqui em péssimas condições, sem água, sem comida para que fossem vendidos a preços exorbitantes na época e edificassem todo esse país.  Sem contar todas as formas de tortura que sofriam – físicas, psicológicas e sexuais.

E aí, vocês ainda acham que não há relação entre uma coisa e outra? Ainda vão tentar me convencer do contrário? Tentem.

Isso também me faz lembrar que há alguns anos encasquetei com a ideia de ter um aquário. Pouco tempo depois assisti a animação da Disney, Procurando Nemo. Acreditem, eu, depois de assisti ao filme e entender um pouco do que dizia a história, não tive mais coragem de ter um aquário. Achei até quem dissesse que eu era uma boba, e ia me deixar influenciar por uma animação infantil. Que fosse, mas a partir dali eu já havia desenvolvido uma concepção de mundo totalmente diferente das que se tem por aí. Já havia entendido o respeito aos animais e modo como devemos tratá-lo. É este questionamento que venho fazer aqui.

Mas caso continuem me achando uma boba e sugestionável, tudo bem. Só espero que não cheguemos à era do especismo às avessas, em que os papéis se inverterão, animais e seres humanos disputarão espaço de poder para manterem sua soberania.

Uma resposta »

  1. Oi Paula,

    Parabéns pelo blog e pelas reflexões sempre tão instigantes. Admiro muito a coragem que você tem de abordar certos temas aqui no seu blog. Penso que estas discussõe deveriam se estender e “provocar” mais a FACED. Bjs.
    Izaura.

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