Nós, mulheres pretas, também temos o direito de amar – e ser amadas

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Não aceite migalhas de afeto. O amor próprio é o elixir que está faltando no coração de muita preta por aí.

Ao longo dos tempos, tenho visto muitas mulheres, especialmente as pretas, serem preteridas por força de um contrato social elaborado especialmente para nos excluir. Aquele famoso jargão, “mulher preta não é pra casar” (sic!).

Isso é facilmente percebido nas relações afetivas que são constituídas informalmente – “juntar os trapos” -, e que dispensam maiores formalidades no envolvimento dos casais, sob a ótica de que não é importante” constituir uma relação mais séria conosco.

Não é preciso ir muito longe para ver o tanto de mulher preta que compartilha relacionamentos não acordados pela união estável/casamento. Isso não se configura um problema na relação afetiva, desde que ambos os envolvidos concordem com o seu estado de convivência. Entretanto, devo dizer que o reflexo dessa informalidade ratifica toda vez e sempre o modo como somos vistas e reportadas socialmente.

O sonho do matrimônio ainda é um legado conferido a quem detém o valioso patrimônio da cor – mulheres brancas – que, por sua vez, são em si representações de status de poder e sucesso social. Tal observância advém da vida prática. Não requer muita expertise qualquer inferência a respeito – basta ver quais mulheres figuram ao lado de homens que são a representação do poder no mundo [não se atentem às exceções, please].

Se observarmos com cautela, veremos muitos casos de mulheres pretas que por gerações são tratadas como menores frente ao matrimônio. Um disfarce nem um pouco amoroso que nos acomoda num lugar social de desprezo, nos condicionando a viver com migalhas amorosas e que determinam nosso lugar de subalternidade no espaço.

Aqui, não se faz relevante as estatísticas de homens pretos que preterem mulheres pretas pelo ideal de beleza e prestígio que a branquitude confere. Não me deterei a falar dos homens pretos, pois a minha atenção aqui é exclusivamente para nós: mulheres pretas.

Pois bem, e é falando de nós e para nós que volto minha fiel atenção, tendo em vista este texto ser imensamente autoral de uma mulher preta que ama e é amada. Que anseia pelos mesmos desejos que todas as outras mulheres suscitam em viver um dia: o gozo pleno da felicidade.

Sempre que falo de mulheres, especialmente as pretas, volto toda a minha observância, afeto e respeito no que discorro. Seria extremamente desonesto e insensato falar de um lugar apropriando-me de uma fala que não a minha e dando ganho de causa ao que não experiencio. Isso não seria sororidade. E é por falar de sororidade que aqui estou mais uma vez, discorrendo linhas para falar de amor, amor puro e sincero, amor despretensioso, amor de entrega, e, sobretudo, respeito.

Falar de amor por vezes soa piegas, inapropriado, ou até mesmo desnecessário. Rebato. Sim, rebato, pois, em tempos tão austeros, falar de amor é contraventor. Amor para a mulher preta é ultrajante. Acreditem, há quem pense que é um ultraje amar; amar uma mulher preta.

O ‘pecado original’ de amar uma mulher preta desloca o lugar social de quem se põe ao seu lado, já que não somos dignas de afeto.

Qualquer que seja o tempo, o afeto proporcionado pela relação que envolva uma mulher negra torna-se passível de desprezo e chacota social. Alimenta-se no imaginário social que a mulher preta é mais fervorosa no sexo, e com isso, é objeto de desejo para os infortúnios mais despropositados que atuam no campo sexual-antropológico (e depois há quem não entenda por que as mulheres pretas são as mais vitimadas pela violência sexual no Brasil). Isso encontra-se eivado no tecido da sociedade, sendo herança do nosso passado escravista, tão ensejado diuturnamente.

As denotações que atuam no campo da sexualidade são muito mais vibrantes e calorosas das que atuam no campo do debate racial. Aqui, me aventuro a falar de ambos quando falo do amor da/para a mulher negra.

Já discorri em outras linhas sobre a representação sexual da mulher negra e dos inconvenientes que isso nos traz. Assim como já me detive a discorrer sobre relações de raça e gênero. E de modo mordaz, apontei situações nas quais somos a todo momento violentadas por não ser nosso o direito exclusivo sobre os nossos corpos.

A quem confere se não as nós mesmas o direito de amar e sermos respeitadas por isso? O direito de amar e ser amada dentro de um contrato social ainda é uma realidade muito aquém do esperado por muitas de nós. E por menor que seja esse efeito simbólico de constituir uma relação matrimonial, isso tem tido um efeito impactante nas nossas vidas.

Somos mulheres, muitas, frutos de relações afetivas furtivas, filhas de mães solteiras, que não gozaram do direito ao véu e grinalda. O estado civil altera todo o sentido socioantropológico que vem sendo resgatado pelas/para as mulheres pretas. O casamento, para algumas de nós, não é um caprichinho, e sim a afirmação de um valor social que sempre nos foi tacitamente negado.

Por mais estranheza que o que escrevo aqui te cause, isso faz parte da nossa realidade há incontáveis e longos anos. Não lembro de precisar reportar-me tão enfaticamente às questões que atentam à mulher negra que não fosse requerendo e retomando uma fala que insistentemente pleiteia um espaço de poder. Falar de amor é também requerer um espaço de poder que nos foi/é negado.

Frente às conquistas que temos alcançado, falar de amor abre uma seara sociológica que apenas principia discussões maiores a serem alavancadas. Estas mal-traçadas linhas são apenas uma gota do que almejamos e ansiamos de modo sincero e justo.

Não esperamos estar indignamente nos rótulos de cervejas, tendo nossa imagem vendida de modo vil. Muito menos sermos representadas de modo esdrúxulo por homens que transfiguram um estereótipo de mulher negra que em nada contribui ao que buscamos ser.

Desejamos, sim, a dignidade de sermos respeitadas e amadas superando assim o acordo tácito que nos violenta física e simbolicamente. Por isso, falemos de amor, respeito e sororidade entre nós e para nós.

Uma resposta »

  1. Como é boa a oportunidade de fazer leitura com conteúdo tão interessante como esse que você nos presenteia. Embora não me importe com a cerimônia tradicional do casamento com uso de vel e grinalda (nunca desejei isso), sei a relevância que representa para muitas mulheres, sobretudo, negras.

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